ALERTA DE GATILHO: USO DE DROGAS, ESTUPRO E SADOMASOQUISMO.
“Não sou uma mulher genuína, mas não estou interessada na autenticidade.” – Candy Darling
Glam Rock, gênero, orientação sexual, drogas, prostituição, skinheads nazistas e sadomasoquismo. Eu poderia estar prestes a escrever um ensaio sobre o universo retratado por Lou Reed em Walk on The Wild Side, single do segundo álbum solo do líder do Velvet Underground, entretanto, o foco nesse texto é o corrosivo Loira Suicida, romance cru e arrebatador, que chocou a cena literária americana devido às suas passagens gráficas contendo uso de drogas, estupro e práticas sexuais sadomasoquistas adoradas pela subcultura Leather que deixariam Gayle Rubin orgulhosa. Escrito por Darcey Steinke em 1992, publicado pela Companhia das Letras no Brasil em 2021, o livro contém personagens que são descendentes diretos do universo junkie retratado por Lou Reed em seu single: outsiders abandonados pela sociedade na sarjeta por serem veemente contra o marasmo do status quo.
Ambientado na década de 90 por um período de duas semanas em uma São Francisco suja, fétida, decadente e assolada pela epidemia da AIDS, o romance (traduzido por Simone Campos, e influenciado por autores como Jenet e Burroughs) conta a odisseia de Jesse, uma mulher angustiada que vive uma crise existencial causada pelo trauma do abandono e pela falácia do american dream. Branca e magra, ela cresceu acreditando que poderia ter e ser tudo que quisesse, e agora, aos 29 anos, ela se encontra sem dinheiro, sem casa e em um relacionamento conturbado e fadado ao fracasso com Bell, um ator de teatro bissexual que se culpa pela morte do pai. Jesse ganha uns trocados cuidando de Pig, uma senhora lésbica e obesa de meia-idade, e em um desses encontros, Pig implora à Jesse que ela procure por Madison, sua filha (ou amante, ou ambas) com quem ela está sem contato há cerca de 5 anos. Ao procurar por Madison, Jesse descobre que ela é uma striper viciada em heroína, e isso, claro, de modo um tanto quanto previsível, faz com que Jesse reconsidere sua orientação sexual. Eventualmente, Jesse acaba se mudando para o apartamento de Madison e começa também a trabalhar como striper — e gradativamente, como garota de programa. A partir daí acompanhamos uma jornada neo-noir em tons neon assustadoramente autodestrutiva, ameaçando a saúde mental, sexual e física da protagonista. O que parece desencadear a desgraça de Jesse é a atemorização causada em seu relacionamento pela sexualidade livre do namorado, uma vez que ela possui o medo constante de ser trocada por um homem.
“Seria o bourbon ou o cheiro de tintura que fazia as paredes cor-de-rosa tremularem feito lábios vaginais? Um odor acidulado cingia a banheira assentada em patas de animal, dedilhava a cortina do chuveiro. Minha visão era líquida e polimorfa feito uma luminária de lava. Vi no espelho a cicatriz do espinho de amoreira que pegara no meu queixo e riscara uma curva finíssima até a testa. Mal se notavam mas a impressão de que minha cara estava rachada. Bebericando mais um gole de bourbon, vesti as luvas de plástico e comecei a repartir o cabelo na raiz. Enquanto a tintura se difundia, ouvi um leve ruído de sucção, como o de água sendo tragada pela terra, e me perguntei: se eu tivesse coragem de cortar os pulsos, será que ia me dar ao trabalho de pintar o cabelo?” (p. 7)
Fiz questão de citar o primeiro parágrafo em seu tamanho original por nele conter todos os ingredientes necessários para podermos ter ideia do talento da escrita de Darcey Steinke; e também para demonstrar o quão impactante e trágico deverá ser o arco dramático da protagonista. As duas primeiras linhas já escancaram o lirismo surrealista que a autora faz questão de usar em cenas pontuais; e ao deliberadamente nos informar que Jesse possui uma cicatriz que literalmente a separa em duas, juntamente com a quase displicente explicitação de que ela contempla o suicídio, nos faz especular se essa informação seria algum tipo de premonição acerca da vida da protagonista. Podemos, ainda, entender essa separação não de forma literal, mas apenas como uma analogia à vida sexual de uma mulher que repente passa a questionar não apenas sua sexualidade, mas também os limites do que ela até então considerava ser aceitável no sexo. O romance é descritivo de uma forma que nos transporta para as ruas pútridas, barulhentas e decadentes. Sua ambientação e sua escrita perfeitas têm o poder de nos fazer sentir o cheiro das coisas descritas por Jesse. Sentimos o cheiro de sémen, sentimos o odor corporal de todos os personagens, sentimos o cheiro de café fresco, etc. A descrição geográfica e arquitetônica também merece aplausos pelo seu detalhismo, de modo que ao fecharmos os olhos conseguimos nos imaginar dentro daquele universo repleto de gays, butchs, drag queens, mulheres trans, punks nazistas e glam rock — um dos momentos mais belos de todo o romance acontece quando Jesse relembra uma dança entre Bell e seu ex-namorado ao som de Satellite of Love, segundo single de Lou Reed no álbum Transformer.
Como não poderia deixar de ser, a autora não se esconde atrás de uma escrita baseada no pudor entre os seres humanos, e como resultado, navega entre águas espinhosas ao abordar temas considerados tabus, como por exemplo, ao construir uma protagonista que se excita enquanto sonha com a possibilidade de ser estuprada por um desconhecido, ou quando flerta com um relacionamento incestuoso. É sintomático que a relação de Jesse com o sexo seja tão problemática que o simples barulho de dois corpos se tocando durante o ato sexual lhe remete não às suas próprias experiências sexuais — ou ao seu medo constante de ser trocada por um homem —, mas sim a um violento ato de homofobia em que um homem gay fora espancado por skinheads nazistas.
Darcey Steinke
“Eu não queria ser uma daquelas mulheres viciadas em indiferença.” (p. 9)
Após presenciar um acontecimento sexual traumático, Jesse parece atingir o limite do que considera aceitável no comportamento sexual e abandona sua vida noturna, porém o que poderia significar uma catarse para a protagonista, a fazendo procurar ajuda e “entrar nos trilhos” acaba tendo o efeito reverso, uma vez que nenhum personagem em Loira Suicida parece de fato desejar entrar nos trilhos, mas sim ser amarrado neles à espera de uma morte trágica. Como resultado, ela elabora um plano que não faz sentido algum: alugar um carro e fazer uma viagem pelo litoral com a finalidade de invadir o casamento de um ex-namorado de Bell e dizer que seu namorado ainda não o esqueceu. Muitas camadas ainda são abordadas por Steinke em Loira Suicida, como por exemplo a repetição do erro, abandono conjugal por parte dos maridos e a vontade de agradar os homens, que parece ser inerente à Jesse e sua mãe — e de modo geral, ao comportamento da mulher norte americana como um todo, que cresce aprendendo que ser a esposa submissa é sua única função.
Embora Loira Suicida funcione como um retrato fiel de uma geração que viu seus ídolos morrerem de overdose, e retrate uma época em que a medicina ainda entendia a transexualidade como patologia, me incomoda o uso de termos já estigmatizados em um livro publicado em 2021, principalmente por estampar em sua capa ninguém menos do que a modelo e atriz Candy Darling. Darling foi uma mulher trans, musa de toda uma geração de rockeiros — entre eles, o supracitado Lou Reed, que inclusive a homenageia em duas de suas músicas mais famosas: Candy Says e Walk on the Wild Side. Candy ficou mundialmente conhecida graças às suas atuações em filmes do diretor Andy Warhol. Ela morreu em 1974 aos 29 anos em decorrência de um linfoma causado por um medicamento usado no seu tratamento de reposição hormonal. Achei também de muito mau gosto a escolha da — belíssima — fotografia intitulada “Candy Darling em seu leito de morte” como capa de uma obra que narra a história de uma protagonista que flerta com o suicídio. Justamente Candy, que cheia de vida, buscava a mudança corporal para tornar-se quem ela de fato era, ser passável, e para sobreviver, e não para agradar homens como parece ser (ao menos no início) o motivo pelo qual Jesse muda a cor do seu cabelo. Candy Darling morreu lutando pelo direito de ser quem ela era.
Candy Darling on her Deathbed. Foto de Peter Hujar