Best-seller escrito quase em tom de sermão, Questão de Raça é profético e observador. Foi publicado originalmente em 1993 com críticas veementes à figuras intelectuais norte-americanas e ao moralismo dos conservadores negros em oito ensaios. Cornel West denuncia a discriminação contra mulheres e gays nas comunidades negras, bem como a homofobia de Martin Luther King Jr., que é deliberadamente ignorada por estudiosos negros, passando pelas ideias reacionárias de Zora Neale Hurston, que eram propositalmente ignoradas pelas fãs e pelas feministas da época — e em “O novo conservadorismo negro posto a nu” ele critica duramente o conservadorismo entre os negros quando diz que não faz nenhum sentido ser negro e conservador no contexto da política americana. O que dá a entender é que nas palavras de West, o negro conservador anseia o poder aquisitivo dos brancos conservadores, ou seja, ter o mesmo poder do seu opressor.
Fisgando o leitor desde a primeira página, ao criticar com vários argumentos a falácia da democracia norte-americana, a chamando de fracasso colossal, o autor fala do perfilamento racial, e usa como exemplo números alarmantes. Para fins de comparação, os negros consomem apenas 12% das drogas consideradas ilegais nos Estados Unidos, mas sofrem quase 70% das condenações. E de acordo com uma pesquisa feita em 2021, 94% das pessoas presas por porte ilegal de maconha são negras, sendo que o número de pessoas brancas que também fazem uso da droga é praticamente o mesmo. Essas informações dialogam diretamente com o projeto do Complexo Industrial Prisional tão criticado por Angela Davis em Estarão as prisões obsoletas?. Antes mesmo do final do segundo prefácio ficamos com a certeza de que estamos diante de uma obra que nos impactará, e de que as críticas de West encontrarão seu alvo independente de quão famosa a personalidade é. Para termos uma ideia, antes mesmo no livro começar de fato, Obama é duramente criticado pelo autor, que usa o risível prêmio de Nobel da Paz vencido pelo ex-presidente no mesmo ano em que ele lançou 26.171 bombas no Iraque, matando 1 milhão de pessoas; no Afeganistão, matando 220 mil e no Paquistão, matando 80 mil.
Ao abrir o ensaio intitulado “Niilismo da América negra”, o autor examina as origens da falta de esperança sofrida pela população negra no amor, na política, na cultura e na educação — dialogando com as palavras de James Baldwin em Notas de um Filho Nativo. É importante salientar que o niilismo usado por West não deve ser entendido no sentido da doutrina filosófica geralmente atribuída a Nietzsche, e sim à experiência de viver sem propósito que é resultante das sequelas da escravidão no Novo Mundo — algo parecido com o que Paulo Freire chamou de “Anestesia Histórica” — que West batiza aqui de “Eclipse da Esperança”. Na sequência, West parte da década de 60 para detectar a origem da fragmentação das estruturas culturais do que ele chama de “América negra”, e segundo ele, os responsáveis diretos eram a saturação das forças de mercado, a mentalidade consumista e uma duradoura crise de liderança negra. Aproveitando a citação a Freire, recordei sua conversa com Ira Shor em Medo e Ousadia, quando ao criticar o individualismo norte-americano, Shor dialoga diretamente com o pensamento de bell hooks (fã declarada de Freire, aliás) — mas de um local de fala totalmente diferente — em Tudo Sobre O Amor, quando ela diz que “A emergência da cultura do ‘eu’ é consequência direta da incapacidade de nosso país de pôr em prática, de fato, a visão de democracia enunciada em nossa Constituição e na Declaração de Direitos.” (p. 139)
Cornel West
Um detalhe muito pertinente que, apesar de não ser novidade, mas que talvez possa ser desconhecido pelo leitor branco, e que é explicado da forma mais didática possível pelo autor, é como o medo das autoridades brancas, o racismo e a ira acumulada pelos homens negros faz com que as mulheres e as crianças negras sejam suas principais vítimas, as transformando nas criaturas mais vulneráveis da sociedade norte-americana. Como exemplo, o autor usa os romances O Olho Mais Azul, e Amada, de Toni Morrison (quem o autor afirma ser, com a morte de James Baldwin, a única intelectual norte-americana capaz de unir a luta pela justiça e pela dignidade humana de uma forma que transcende a raça).
Citando — e dialogando com — bell hooks em Anseios: raça, gênero e políticas culturais, Cornel West abre “As Armadilhas do raciocínio de base racial” analisando quão desastroso foi o acesso dos privilégios masculinos e dos valores patriarcais pelos homens negros que, segundo a autora, foi uma das principais causas de enfraquecimento da luta racial. De forma mais contundente, o autor busca, explica e mostra as raízes do comportamento homofóbico dentro da comunidade negra, principalmente pelos homens. Segundo o autor, “os sentimentos nacionalistas negros promovem e incentivam o conservadorismo cultural entre os negros, em especial o poder machista (e homofóbico)” (p. 57). Sobre os homossexuais negros, West afirma: “Essa situação é mais desoladora para a maioria dos homens negros homossexuais, que rejeitam a opção dominante do estilo machista, mas são, por isso mesmo, marginalizados na sociedade dos brancos e penalizados na comunidade negra.” (p.121). As ideias apresentadas por West aqui funcionam como uma amostra do ensaio seguinte, no qual o autor critica duramente a crise na liderança negra.
Questão de Raça, publicado pela Companhia das Letras, com tradução de Laura Teixeira Motta, é um ótimo livro que, embora seja mais voltado às questões raciais, políticas e sociais dos EUA, contém tópicos que podem e devem ser tratados e absorvidos de forma universal, como por exemplo, a igualdade, a identidade, as relações nem sempre amigáveis entre negros e judeus, a sexualidade dos negros, e como o castismo era e é o responsável em negar oportunidades para pessoas negras qualificadas — muitas vezes mais qualificadas do que os brancos que conseguiam as vagas de emprego, etc. (Para um aprofundamento sobre o conceito de Casta, recomendo este, este e este post da Maria Ferreira em seu Instagram). Cornel West termina no livro de forma memorável quando dialoga e critica a ira de Malcolm X — e a sua influência nos jovens da época.
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