James Baldwin escreve com melancolia sobre o amor encarcerado em “Se a rua Beale falasse”

Espero que ninguém nunca seja obrigado a ver a pessoa que ama através de um vidro.  – James Baldwin

Escrito na década de 50, mas publicado somente em 1974, Se a rua Beale falasse (publicado no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Jorio Dauster) é o quinto romance de James Baldwin. Situada no Harlem na década de 70, a história é narrada em flashbacks — alternando entre passado e presente — por Tish, uma jovem negra de 19 anos, que nos conta a sua melancólica história de amor com seu noivo Fonny, um escultor negro de 22 anos que foi preso após ser acusado injustamente — por Bell, um policial branco —  de ter estuprado uma mulher de origem latina. Apenas a descrição acima já seria suficiente para prender e causar raiva no leitor interessado em questões como injustiça social, racismo sistêmico e… amor. Porém, é preciso acrescentar uma informação fundamental que agrava ainda mais a situação: Tish está a caminho da prisão para dizer a Fonny que está grávida. Nestes flashbacks saberemos como começou essa paixão, como Fonny acabou preso, e o desespero das duas famílias em tentar tirar o rapaz de trás das grades.

Um detalhe impressionante em Se a rua Beale Falasse são as descrições que nos abraçam, nos envolvem e nos absorvem. As canções e os cantores citados trazem uma sensação de realidade, nos conectando ainda mais com a história. É uma sensação estranha, uma vez que sabemos que estamos diante de um livro, de uma história criada por Baldwin, mas ao mesmo tempo, estes detalhes — bem como as descrições da movimentação do bairro no final de semana — funcionam como um convite à realidade, uma espécie de quebra da parede ficcional. Destaco a descrição do estúdio de Fonny, que quase nos faz sentir o cheiro do lugar, das ferramentas e das esculturas criadas por ele. Nas entrelinhas, também existe uma crítica à objetificação: do corpo negro feminino, exemplificada pela na cena em que Tish é assediada por um rapaz branco que a trata como uma comida de fácil acesso; e do masculino, exemplificada pelo mito do homem negro estuprador de mulheres brancas. Estes dois temas foram abordados de forma mais aprofundada por Angela Davis, quase uma década depois, em seu livro Mulheres, Raça e Classe: “A imagem fictícia do homem negro como estuprador sempre fortaleceu sua companheira inseparável: a imagem da mulher negra como cronicamente promíscua. Uma vez aceita a noção de que os homens negros trazem em si compulsões sexuais irresistíveis e animalescas, toda a raça é investida de bestialidade. Se os homens negros voltam os olhos para as mulheres brancas como objetos sexuais, então as mulheres negras devem por certo aceitar as atenções sexuais dos homens brancos.”

James Baldwin em New York, 1963. Foto: Dave Pickoff

Contrastando com a objetificação acima, Baldwin escreve com maestria duas cenas memoráveis — por razões bem diferentes — de sexo. Primeiro, a primeira noite de amor entre Tish e Fonny, relembrada e narrada pela jovem. Aqui o autor percorre por cada canto e curva do corpo dos noivos através de descrições sensuais, quentes e repletas de um afeto que se transforma em volúpia, em dor, em prazer. Fonny, dentro de sua amada, se transforma em um vulcão prestes a entrar em erupção. Já a segunda cena, é bem menos plasticamente bela, e memorável pelo aspecto bizarro: Fonny descreve para Tish o dia em que ele escutou seus pais fazendo sexo, e o jeito que Baldwin escreve, misturando o ato sexual com religiosidade e perversão, indicando a hipocrisia da mãe de Fonny — uma mulher extremamente religiosa e conservadora — merece aplausos porque nos mostra como a moral da mulher foi construída em cima de castelos de areia.

O colorismo como ascensão social é abordado por Baldwin através de Tish, Fonny e suas irmãs. Tish é uma negra que possui a pele mais escura do que a de Fonny, e por isso é considerada inferior por sua sogra e suas duas cunhadas — negras de pele clara. Fonny, por sua vez, por ter a pele mais escura do que as de sua mãe e irmãs, é constantemente ignorado e tratado como inferior por elas. Já suas irmãs tentam ao máximo se parecer com pessoas brancas — seja no cabelo sempre liso, nos trejeitos, na linguagem, e também em suas companhias. Porém existe um paradoxo social e racial: elas são brancas demais para os negros, e negras demais para os brancos. Logo, a tão desejada ascensão não se concretiza. Essa discussão é riquíssima e demonstra como o colorismo pode afetar o modo como o amor é recebido e distribuído na sociedade.

Curiosamente — e de modo inteligentíssimo —, Baldwin sugere, através de uma cena em que Tish e Fonny, ainda crianças, vão à igreja, a ligação entre as prisões e as igrejas. E se pararmos para pensar, analisando as duas instituições através de uma lente mais crítica, faz muito sentido, uma vez que tanto a igreja quanto a prisão são baseadas na opressão. Falando em opressão, é sintomático e apropriado, o autor comparar Bell, o policial racista com o ator John Wayne, famoso por ser racista e por interpretar cowboys entre as décadas 30 e 70. Oras, uma vez que é evidente que policiais se imaginam e se portam como cowboys acima da lei, e enxergam o negro como a ameaça, a escolha de Wayne foi certeira para exemplificar de modo sucinto o comportamento da polícia. Acho, aliás, que é imprescindível destacar que Hollywood apagou sistematicamente os cowboys negros — que eram os originais — de suas produções, e por conseguinte, do imaginário popular, e em seu lugar, criou o mito do cowboy branco e salvador como sendo a realidade. 

Se a rua Beale falasse é uma sensível, melancólica e esperançosa história de amor, de aceitação e de pais negros tentando criar seus filhos da melhor maneira possível em um país devastado pelas sequelas da escravidão e pelos traumas causados devido à violência — mental e sexual — sofridas por mulheres negras e homens negros engolidos pelo Complexo Industrial Prisional norte-americano comandado pelo homem branco, que aqui não significa a figura individual, mas sim a Instituição Homem Branco, que é quem está por trás do comando das escolas norte-americanas, e Baldwin, como não poderia deixar de ser, faz duras críticas ao racismo dos professores e seus modos de (des)educar a criança negra quando escreve que “as pessoas que administram essas escolas querem ter certeza de que eles não vão ficar espertos: estão de fato ensinando os meninos a serem escravos.” (p. 43).

É comum para o leitor familiarizado com o estilo de Baldwin se deparar com textos raivosos e cheios de ira direcionada à Instituição Homem Branco. Foi assim com Go Tell It On The Mountain; em O Quarto de Giovanni; a mesma raiva também é encontrada de forma mais evidente em The Fire Next Time, Terra Estranha, e principalmente em Dark Days. Em Se a rua Beale falasse, entretanto, essa raiva que aparece de modo mais escancarado nas palavras de Tish — seja na narração ou em seus diálogos — contrasta com o tom mais melancólico escolhido por Baldwin ao escrever o romance. Na verdade fiquei até surpreso por esse tom mais calmo de escrita, uma vez que estamos diante de duas famílias que lutam contra um racismo que mata os negros nos Estados unidos há vários séculos. No poema “Confissão” — encontrado em Jimmy’s Blues and Other Poems, seu único livro de poemas, Baldwin pergunta: “Oh, Deus, podem estes ossos viver?” Trazendo essa pergunta para cá, feita por incontáveis pessoas negras ao longo dos séculos, ficamos também nos perguntando até quando Fonny suportará a violência na prisão caso sua fiança não seja paga.

Ao que tudo indica, a voz de Tish, servindo de canal para os pensamentos de Baldwin, foi moldada pela simbiose entre obras de feministas negras do final da década de 60 e o amor afrocentrado, uma vez que este é o único romance do autor que é narrado por uma mulher, que por sua vez é a protagonista do primeiro livro do autor que é focado no amor entre pessoas negras. Todos estes detalhes fazem ainda ser mais simbólica sua decisão de dar voz a uma mulher negra, e se pensarmos no título da obra, fica evidente que se a Rua Beale pudesse falar, ela nos mandaria dar um passo atrás, calar a boca, ouvir, acreditar e colocar em prática o que as mulheres negras têm a dizer.


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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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