Tenho pautado várias das minhas escolhas a partir da perspectiva decolonial para pensar a literatura, o teatro e a educação fora do padrão eurocêntrico. Nos últimos anos, felizmente, este assunto vem alcançando mais espaço.
Quando me contaram que Portugal era o país convidado, eu achei curioso não só porque Portugal é um país imperialista que explorou muitos territórios de forma violenta, mas também porque nos últimos dois anos tivemos um avanço no mercado editorial sobre este tema, logo, avançamos também nesse debate. Convidar Portugal para um evento em 2022, chega a ser engraçado porque Portugal nunca precisou de convite algum para estar nesse território, não é mesmo? Mas como interessada no uso da linguagem, também acho irônico chamar de “convidado”. Nas minhas aulas, por exemplo, se eu tiver poder de escolha, Portugal só vem se convidarmos, se não, a literatura sobre a qual conversamos e focamos em sala é justamente essa, pensada a partir da perspectiva da decolonialidade. Não estou desconsiderando o que há de interessante na literatura portuguesa, inclusive, eu gosto de vários autores, mas é incômodo o fato de que somos ensinades na escola a achar a cultura europeia e tudo que se aproxima disso, melhor do que tudo.
Porém, o fato de ser justamente Portugal o país convidado possibilitou várias conversas interessantes durante a Bienal, não só em relação à literatura mas também em relação à colonização. Tanto as mesas no stand de Portugal como na Arena Cultural, palco principal do evento, havia escritores e escritoras pensando a decolonialidade. Paulina Chiziane, por exemplo, falou sobre como é o processo de tornar a língua portuguesa, aquela que vem com o colonizador, em uma língua mais humana. No próprio stand de Portugal também assisti a mesa com Jeferson Tenório e Lídia Jorge e foi muito interessante notar a diferença nas perspectivas de quem veio de um país colonizador e de um país colonizado aproximadas pela literatura. Embora venham de contextos muito distintos, ao falarem sobre escrever literatura, Jeferson e Lídia mostraram semelhanças em como pensam a literatura.
Perguntaram ao Jeferson Tenório sobre as obras dele e a relação com a atualidade. A narrativa de O avesso da pele, de Jeferson Tenório, está atravessada pelo racismo e pela violência policial, mas ele propõe narrativas que vão além do seu tempo pela linguagem, como essa que aborda a relação entre pai e filho. Ele enfatizou a importância de termos outras vozes e discursos presentes na sociedade e como a periferia se apropria das produções culturais como em um jogo de capoeira, em que ora tem o ataque e ora tem a defesa. Pensar a capoeira como metáfora também é uma atitude decolonial, bem como reconhecer que o Mano Brown foi pai de uma geração inteira. É importante que mesmo em uma conversa sobre literatura outras manifestações culturais como o rap, a capoeira, as religiões de matriz africana apareçam, isso é pensar para além dos desejos da colonização.
Jeferson Tenório comentou ser um dos primeiros cotistas a se formar na universidade, isso mostra a importância não só das cotas, mas também da ocupação dos espaços. Fiquei imensamente feliz quando ele contou que o próximo livro dele é sobre a entrada de pessoas negras na universidade e perguntei como a educação atravessou a trajetória dele como leitor e escritor. Ele respondeu que a coisa mais transgressora que ele já fez na vida foi se tornar um leitor. Essa fala define muita coisa. Fiquei com muita vontade de ler todas as obras dele.
Voltei para casa com muita vontade também de conhecer mais a produção da Paulina Chiziane, Octavia Butler, Nicole Dennis-Benn, Edwidge Dandicat, Djaimila Pereira de Almeida, Paul Beatty, MV Bill, Roberta Estrela D’alva, Ailton Krenak e Davi Kopenawa Yanomami. A Bienal traz muitas informações ao mesmo tempo, mas entre as duas visitas que fiz, pensei coisas novas e voltei pensando no que tinha visto, lido e escutado por lá.
Ao passar pelos stands em que estava acontecendo rodas de conversa, era sempre possível escutar convidades falando sobre decolonialidade. Este realmente foi um assunto que apareceu muito na programação e algumas editoras também deram destaque a essa parte. Isso ajuda o público a perceber que de fato existem muitas publicações e opções de livros para pensar além do que já conhecemos e do que nos é imposto.
Convidar Portugal foi uma desculpa para conversarmos mais sobre a decolonização e é preciso que esse debate seja promovido, é isso que faz a sociedade avançar. Espero que nos próximos anos a Bienal traga como país convidado, algum dos países saqueados pelo imperialismo português para fazer o contraponto. Imagina que louco uma grande placa escrito MOÇAMBIQUE no meio da Bienal. Acredito que até mesmo pensar a literatura latino-americana seria muito potente para levantar outros debates sobre a nossa literatura, línguas e territórios.