A Rage in Harlem, (publicado no Brasil em 2007 pela L&PM Pocket como A maldição do dinheiro) é o primeiro livro da lendária série de livros Harlem Cycle criada por Chester Himes na década de 50. Com o apropriado título original For Love of Imabelle, o romance de narrativa rápida e direta prima pela violência estilizada e reviravoltas — mas sem deixar de fazer comentários pertinentes nas entrelinhas acerca da vivência da população negra e queer norte-americana que vivia no Harlem e arredores. Mas isso, claro, só será encontrado por leitores que olharem além da superfície da narrativa.
O romance também possui a importância literária de ser a estreia dos detetives negros Jones Coveiro e Ed Caixão, dois dos detetives mais importantes e icônicos da literatura, que embora aqui sejam apenas personagens secundários, viriam a protagonizar os outros 8 romances que examinariam a cultura, a criminalidade e a vida noturna do Harlem durante as décadas de 40, 50 e 60, o que transforma o romance (e o restante do Harlem Cycle) em uma espécie de registro histórico de uma realidade que aconteceu de fato, ainda que tenha sido eternizada — e exagerada, no melhor dos sentidos — de modo ficcional pelo autor.
Inspirada por nomes como Raymond Chandler e Dashiell Hammett, a série Harlem Cycle nasceu puramente com a finalidade de pagar as contas, já que enquanto vivia como um expatriado em Paris para fugir do racismo sistêmico norte-americano — assim como vários outros autores de sua geração, entre eles, James Baldwin —, Chester Himes se viu forçado a escrever algo que se traduziria em dinheiro para poder viver da escrita, uma vez que seus romances anteriores, classificados como “romances de protesto”, apesar de serem todos muito elogiados e respeitados, não eram sucesso de vendas.
O diferencial de Himes dentro do contexto literário, mais precisamente entre os autores da literatura noir, era a sua experiência enquanto um homem negro e queer dentro do Complexo Industrial Prisional norte-americano. Estes aspectos o separavam e o destacavam entre os autores brancos do gênero, já que ele possuía a bagagem histórica, cultural e emocional para escrever sobre a marginalidade (criminal e sexual) com propriedade.
Amor, desilusão e violência estilizada
Na trama de A maldição do dinheiro, que se passa em 1955, acompanharemos Jackson, um inocente jovem negro retinto e religioso que, trabalhando como funcionário de uma funerária, acaba se envolvendo com crossdressers, traficantes, assassinos e cafetões quando decide entregar todas as suas economias à Imabelle, sua namorada negra de pele clara, que, por sua vez, havia fugido do Mississippi com o ouro de fachada de uma gangue que estava sendo procurada por um triplo homicídio. Imabelle, como seu nome sugere, é a femme fatale e o termômetro do romance, já que toda a narrativa tem início quando ela chega ao Harlem, seduz Jackson e passa a viver com ele para se esconder. Após uma explosão envolvendo falsificação de dinheiro, Jackson, para evitar ser preso, rouba 500 dólares do seu chefe para pagar propina de 200 dólares a um policial. Para tentar recuperar o dinheiro emprestado à Imabelle, o pobre sujeito tenta a sorte no jogo de cartas, mas sem surpresas, perde também o dinheiro restante. Como resultado ele passa a ser procurado por falsificação de dinheiro e por roubo. Desesperado, ele decide pedir ajuda a Goldy, seu irmão gêmeo viciado em heroína — que faz parte de uma gangue de drag queens — para encontrar a amada que ele imagina ter sido sequestrada.
Como ficou claro na descrição acima, imediatamente somos sugados para uma narrativa que apesar de absurda, caótica e por vezes complicada — simbolizando a própria existência negra no contexto norte-americano, como viria a explicar Chester Himes ao ser questionado sobre o absurdismo de suas obras —, não deixa o leitor entediado em nenhum momento, já que todos os personagens criados e inseridos aqui pelo autor são como peças minúsculas de uma enorme engrenagem que nunca funcionaria se qualquer aspecto da trama fosse removido em versões antigas do rascunho. Sem nenhuma piedade Jackson é jogado por Himes em situações cada vez mais desesperadoras — ainda que engraçadíssimas em determinados momentos —, de modo que nós ficamos viciados no efeito que o romance nos causa. Em uma sacada genial do autor, intencional ou não, cada final de capítulo funciona em nós como mini-crises de abstinência, já que nosso organismo acaba ficando viciado na adrenalina causada pela escrita hipnótica do autor — dialogando diretamente com as crises de abstinência de heroína de Goldy.
A marginalização do corpo negro e queer pós-renascimento do Harlem
Por mais válido que seja entender e consumir o texto de Chester Himes puramente como literatura policial, é muito mais interessante analisar o romance através de uma lente queer, mais precisamente no contexto da comunidade LGBTQ e negra norte-americana da época, já que não é difícil percebermos o aspecto transgressor da escrita de Chester Himes, apesar de a princípio algumas de suas obras terem sido consideradas inferiores em termos literários por alguns intelectuais da época, entre eles o próprio James Baldwin — outro autor negro e queer. Himes consegue ser político, bem-humorado e pertinente enquanto faz comentários sobre temas como práticas de crossdressing, de drag, sexo e amor lésbico, homoerotismo e androginia, sempre abordados de forma positiva em seus romances, nunca como alívio cômico, ou, na pior das hipóteses, como uma forma de desvio de conduta para chocar o leitor.
Sabemos que Jackson, por exemplo, é um sujeito conservador, religioso e desprovido de inteligência. Sabemos também que ele sente vergonha e evita o contato com o irmão por ele ser um viciado em drogas que tira dinheiro de outros negros religiosos desprovidos de inteligência, e não pela sua (implícita) relação com Big Kathy, uma drag queen/crossdresser dona de um bordel que explora meninas negras menores de idade. Toda a subtrama envolvendo drag queens e crossdressers, aliás, não é simplesmente jogada na história de modo desajeitado e sem a função de desenvolver a trama, mas sim de forma orgânica, nos remetendo a um fator histórico importante: a relação do Renascimento do Harlem com a comunidade artística, gay e negra nova-iorquina durante os fabulosos anos de efervescência cultural, artística e social que aconteceu na década de 1920, chamados de “Roaring Twenties“.
Engana-se quem pensa que temas como sexualidade, identidade e performance de gênero são casos isolados na carreira de Himes, ou inseridos de forma gratuita em A maldição do dinheiro. Em O harlem é escuro, de 1989, por exemplo, a trama envolve o submundo das boates gays; em Um jeito tranquilo de matar, de 1959, Himes subverte o conceito da femme fatale ao usar uma lésbica negra e butch que ostenta cabelos raspados cor de neve; já em O crime não compensa, de 1960, a trama gira em torno de mulheres trans, drag queens e homens negros gays; e finalmente, em Yesterday Will Make You Cry (O ontem te fará chorar — em tradução livre), de 1952, um de seus primeiros romances mais autobiográficos, o autor escreve a versão ficcional de seu relacionamento sexual e amoroso com um companheiro de cela durante 7 anos.
Logo, a surpresa não é o fato de Himes explorar temas relacionados à sexualidade, gênero e orientação sexual com uma mão tão calibrada. A surpresa se encontra na sua coragem de abordar esses temas sendo um homem negro em uma época em que ter qualquer comportamento diferente do padrão heterossexual poderia significar sua prisão. Vale lembrar que ao abordar esses temas, Himes corria sério risco de ostracismo, visto que a aceitação com relação às identidades queer entre os negros norte-americanos começou a diminuir drasticamente com as Leis Jim Crow desde o Renascimento do Harlem. Em outras palavras, Chester Himes arriscava sua carreira justamente quando ele finalmente havia atingido o sucesso crítico e comercial: durante o surgimento dos movimentos dos direitos civis, uma época em que muitos intelectuais negros, ao menos em público, passaram a absorver e propagar os pensamentos homofóbicos e a adotar a heteronormatividade e a atitude dos brancos de classe média relacionadas à sexualidade e gênero como padrão, principalmente porque a existência de pessoas negras gays poderia dificultar a aceitação e a integração da população negra como um todo. Era como se alguns dos intelectuais negros pensassem: “Eles já nos odeiam por sermos negros, o que ganharíamos se adicionássemos mais um motivo para sermos odiados quando estamos buscando por integração?”
Voltando à trama, percebemos de imediato que o romance não é, como os posteriores, um veículo para testemunharmos as investigações e a interação de Ed Caixão e Jones Coveiro — que viriam a protagonizar os outros romances — com diversas figuras da noite, do crime e da culturado Harlem, uma vez que aqui eles nem mesmo chegam a atuar como uma dupla na maioria do tempo, já que durante grande parte da trama Jones Coveiro atua sozinho. Ou seja: a dupla nem mesmo pode ser considerada coadjuvante.
De forma acertada, Himes deixa o protagonismo a cargo de Jackson e Imabelle, dois personagens que funcionam perfeitamente juntos, apesar de serem completamente diferentes. No entanto, a violência, o jeito truculento e o pavio curto da dupla de detetives, claro, já estão aqui, principalmente como resultado de um acontecimento traumático que é citado em todos os outros livros: é neste romance que Ed Caixão é atacado no rosto com ácido por um bandido, detalhe que o transforma interna e externamente na pessoa amarga, angustiada e violenta que conhecemos nos outros romances. E o fato de sabermos que em qualquer momento o ataque irá acontecer faz com que um suspense ainda mais angustiante permaneça na narrativa. Outro aspecto interessante no romance a respeito de todos os temas e personagens considerados fora do padrão heterossexual é justamente a hipermasculinidade de Ed Caixão e Jones Coveiro, que são inseridos na cena gay do Harlem a contragosto, tendo que lidar, interrogar, e até mesmo respeitar pessoas que a igreja e a comunidade negra os ensinaram a odiar.
Contando com longas descrições de ruas, roupas, casas e corpos, o romance é um dos mais descritivos e imersivos do Harlem Cycle, nos transportando diretamente para o caos da narrativa. As sequências de suspense e ação absurdas, sempre presentes nos outros romances, também estão aqui, principalmente em uma longuíssima cena no terceiro ato. quando Jackson é interrogado por policiais brancos em uma estação de trem, e quando, a bordo de um carro funerário contendo um cadáver e um baú cheio de ouro, ele é perseguido por uma dezena de viaturas pelo Harlem — e o fato dele não saber que está transportando aquela carga faz com que tudo ganhe uma paradoxal carga de humor e de tensão.
A maldição do dinheiro no contexto do Harlem Cycle
Ler os livros na ordem de publicação seria o ideal para testemunharmos a jornada de ambos os detetives e do próprio Harlem, mas os ler fora de ordem também tem um lado positivo: poder perceber como se originou o medo que os moradores do Harlem sentem da dupla, e que é praticamente um personagem nos romances posteriores: o rosto desfigurado de Ed Caixão, que imediatamente gera pavor (susto) e medo (da morte) nos personagens considerados vilões, já que eles sabem que estão diante de um homem amargurado e niilista sem nada a perder. Curiosamente, os únicos personagens que demonstram algum tipo de compaixão por Ed Caixão são seus superiores, principalmente um delegado branco. Ainda, ler A Maldição do dinheiro após ter lido vários romances protagonizados pela dupla nos coloca em um lugar privilegiado enquanto leitores, principalmente por podermos entender como surgiram alguns traços da personalidade dos dois detetives, bem como seu comportamento violento em outros livros, a importância literária de Himes e por tratar-se da estreia de dois dos detetives mais famosos e mais violentos da literatura policial como um todo, e não apenas no contexto da literatura negra.
Como espero ter deixado claro no início deste texto, a trama de A maldição do dinheiro é completamente absurda, com uma infinidade de personagens que surgem na narrativa. Não à toa, nas últimas páginas, um personagem descreve para um investigador os acontecimentos que acabamos de testemunhar e o sujeito simplesmente se recusa a aceitar que aquilo realmente aconteceu. Logo, ler esta obra — ou qualquer outra do Harlem Cycle — apenas como uma simples história de detetives significa perder cerca de 80% do que Chester Himes estava realmente interessado em abordar. Mas, por outro lado, se você não liga para política e não está interessado na crítica social, não se preocupe, você também sairá satisfeito da leitura.
Em conclusão, A maldição do dinheiro é um início eletrizante de uma lendária série de livros que transformou Chester Himes em um fenômeno literário de sua época por retratar o Harlem, as culturas e os personagens negros (e gays) com seriedade e não apenas como ladrões ou personagens unidimensionais, e mesmo após 70 anos de sua publicação, ele contínua necessário porque como sabemos, o mercado editorial brasileiro, mais precisamente dentro da literatura de suspense e policial, é povoado por autores brancos que contam a mesma variação da mesma história e são celebrados por fazer o básico.