“A ossada de um moleque”, de Gabriel Sanpêra, e as subjetividades do sujeito negro

Em 2018, Gabriel Sanpêra chamou a atenção de muita gente com a publicação de seu primeiro livro, Fora da cafua (Editora Urutau). Sua estreia, que fora na poesia, é marcada por uma belíssima construção de imagens que colocam as subjetividades do sujeito negro sob os holofotes. Em 2021 é a vez de Sanpêra arriscar também outros passos com o seu A ossada de um moleque (Oríki).

Vendido como um livro de contos, A ossada de um moleque está mais para uma coletânea de textos breves, pois além da prosa – que em alguns momentos parecem se aproximar mais da crônica do que do conto –, os versos também dão as caras. E quem já está familiarizado com a literatura de Sanpêra não se espantará com os temas que o autor escolhe tratar, pois estes lhe são muito caros: afetos, relações familiares, ancestralidade e a experiência de pessoas negras em um mundo hostil às suas existências. Sanpêra mergulha em si para dar vazão ao seu projeto literário. Há muita coisa íntima em seus textos, e ele não aparenta ter medo de se expor.

Por buscar ser honesto com as mais variadas possibilidades de vida que uma pessoa negra pode ter é que Sanpêra não se esquiva de nos acertar em cheio. O soco que ele nos dá com Do quarto vejo uma pilha de pratos é difícil de esquecer. Não há mistério no que ele narra ali, mas a maneira como o faz é que nos marca. Experimentar a perspectiva de uma criança que passa a entender a dureza de sua existência machuca. Não tem como evitar. Outra marca que ele nos deixa acontece em Vala ou breu, no qual vemos como a cumplicidade de corpos negros podem se dar de maneiras difíceis de se explicar. Se um olhar já basta, o que não faz um sinal brusco? Corremos juntos com os personagens, sentimos o coração palpitar junto aos deles, mesmo sem saber por quê.

Contudo, não são apenas os temas que saltam aos olhos em A ossada de um moleque. A verve poética de Sanpêra se faz presente a todo momento. Não à toa, o ritmo de sua prosa por vezes ressoam como poemas. E embora isso ocorra ao longo do livro, momentos como Superfantástico, o balão mágico que despencou no meu pé deixam isso evidente. As repetições que o autor escolhe muito bem onde pôr no corpo do texto é o que nos guia ali e nos dita o movimento. Algo parecido acontece em Nsoromma, mas desta vez, a beleza das palavras de Sanpêra completam a dança. Um dos textos mais curtos do livro, mas um dos mais poderosos, e que faz jus ao seu título.

A ossada de um moleque é uma coletânea que nos entrega sentimentos diversos. Daqueles que nos estampam um sorriso no rosto àqueles que nos dão um frio na barriga. É também mais um aceno de seu autor, nos lembrando que ele é um escritor que vale muito manter no horizonte. Alguém que lança um olhar inquieto para o mundo a sua volta e que por carência de resignação, tenta transformar tudo o que vê e sente em poesia. Gabriel Sanpêra é tão honesto quanto sensível. E se em Fora da cafua ele nos deixa com vontade de tomar um café fresquinho, em A ossada de um moleque é a vez de nos deixar desejosos por um angu de vó, pois a sua literatura é isso: um gesto familiar que nos desperta sensações.

Confira essa conversa que tivemos com o autor:

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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