Feminismo questionado em “E eu não sou uma mulher?”, de bell hooks

E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo, da escritora norte-americana bell hooks foi publicado pela Rosa dos Tempos, com tradução de Bhuvi Libanio. O livro é organizado em cinco ensaios que resultaram das pesquisas históricas sobre feminismo negro feitas minuciosamente pela autora. Ensaios esses que traçam um percurso histórico da formação da sociedade norte-americana com o recorte de raça, classe e gênero.

Desde o prefácio há pequenas provocações que instigam à compreensão das razões pelas quais falar sobre mulheres negras e feminismo não é uma tarefa fácil nem simplista, como autores anteriores a bell hooks tentaram fazer parecer. Através dele é possível vislumbrar o processo de escrita do livro, já que o mesmo foi feito partindo de ensaios sociológicos e análise de hooks sobre obras já escritas por outros estudiosos. Percebe-se como nem mesmo a escritora tinha dimensão de onde chegaria na escrita do livro, pois no início de suas pesquisas tinha conhecimento de pouquíssimos autores que abordavam o assunto de mulheres negras e feminismo com seriedade.

bell hooks possui uma marca muito característica no seu modelo de escrita que dialoga diretamente com o feminismo negro, pois sua proposta é incluir todas as mulheres negras no debate e reflexão sobre o assunto. Dessa forma, sua escrita é feita pensando em sua mãe Rosa Bell, a leitora que ela gostaria muito de converter ao pensamento feminista, por essa razão sua escrita é pensada de maneira que atravesse as fronteiras de classe.

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Suas percepções iniciais revelaram como a sociedade estadunidense escravocrata tornou a mulheridade negra irrelevante e como isso fundamentou a opressão sexista e racista em conjunto para mulheres negras na época. Enquanto mulheres brancas ativistas negavam o posto de reprodutoras enquanto objetos sexuais, mulheres negras eram parabenizadas pela habilidade de carregar fardos pesadíssimos. O sexismo é percebido por bell hooks como um fator que atua independente e simultaneamente ao racismo. Ela estabelece uma relação sobre os diferentes fundamentos do feminismo liberal e o feminismo negro. Ambas vertentes são distintas, ainda mais considerando que o feminismo liberal foi e ainda é utilizado como ferramenta de perpetuação do racismo e do sexismo.

Primeiro ensaio

No ensaio “Sexismo e a experiência da mulher negra escravizada” a autora traça uma linha temporal minuciosa para pontuar como os navios de tráfico negreiro foram um ponto primordial na desvalorização da mulheridade negra, partindo da relação de poder entre o homem branco colonizador e as mulheres negras colonizadas, que se encontravam em uma situação de extrema vulnerabilidade sexual.

Mulheres negras foram criadas em uma atmosfera de medo. Em diversas situações eram subornadas por seus proprietários a fim de consolidar as propostas sexuais deles, o que as colocava em na posição de prostitutas. Mulheres brancas, em relação às atividades sexuais de seus maridos com escravizadas negras, se mostravam envergonhadas pela profanidade à qual sua dignidade estava submetida. Se sentiam em uma posição desleal em relação aos maridos, mas não se importavam com as condições desumanas e insalubres das mulheres negras após os consecutivos abusos.

A autora evidencia de forma muito didática como mitos sociais foram consolidados partindo do inconsciente racista, como por exemplo o mito da mulher negra dominadora, matriarca e a emasculação do homem negro. Essas questões possuem uma raiz histórica muito mais profunda do que teóricos negros sexistas puderam detalhar, por essa razão a perspectiva de uma mulher negra torna o percurso da leitura muito mais crítica. A autora fala sobre como o sexismo cega até mesmo pessoas que são profundamente afetadas pelo racismo, pois ainda que ele seja uma ferramenta de manutenção de poder, o sexismo infere um juízo de gênero a esse poder.

Segundo ensaio

“Em a desvalorização contínua da mulheridade negra” a autora evidencia que nenhuma das mulheres alforriadas exerceu sua liberdade sexual envolvendo-se de forma natural com homens negros, já que homens brancos, mais uma vez, viram a possibilidade fundamentar as ideias de que mulheres negras eram sexualmente degradantes e desinibidas para desmoralizá-las. Partindo disso, é possível observar que a desvalorização da mulheridade negra não ocorreu isoladamente no período de escravidão. A exploração do corpo da mulheres negras continuou e é na verdade institucionalizado por outras prática opressivas, subsidiada pela supremacia branca. Nesse sentido, hooks fala sobre relacionamentos inter-raciais. Com auxilio de suas análises de registos históricos aponta os motivos pelos quais relacionamentos inter-racias de mulheres brancas com homens negros eram tolerados, mas não o de mulheres negras com homens brancos.

A escritora também menciona como partindo dessa desvalorização sistemática, mulheres negras encontraram um subterfúgio para tirar o foco de sua sexualidade enfatizando, por exemplo, seu comprometimento com a maternidade como forma de contrastar sua dignidade, performando o “verdadeiro” culto à maternidade. No entanto, isso deu origem ao grande mito do matriarcado negro, que a autora contesta veementemente por meio da análise de escritos de outros teóricos, confirmando a ideia de que o matriarcado é só mais uma das formas de desconsiderar as contribuições de mulheres negras.

Terceiro ensaio

No ensaio “O imperialismo do patriarcado” bell hooks discute essencialmente como o fato de homens negros serem afetados pelo racismo não os impede de também serem opressores sexistas em relação a mulheres negras. O sexismo de homens negros já existia antes mesmo das escravidão e bell hooks discorre sobre como isso se fundamentou na divisão de trabalhos que exigia, por exemplo, que mulheres negras realizassem trabalhos considerados femininos e masculinos, mas não exigia de homens negros que realizassem trabalhos femininos.

A autora conta como em 1960, durante o movimento Black Power, homens negros não se envergonharam de demonstrar forte apoio ao patriarcado vigente, mesmo o racismo separando homens negros e brancos, o sexismo unia os dois grupos. A autora também fala sobre como a mídia reforça esse tipo de proposta que atende ao patriarcado moderno, atualmente remodelado para atender as necessidades do capitalismo.

Quarto ensaio

No ensaio “Racismo e feminismo: a questão da responsabilidade”, a autora destaca o inconsciente da ideia de colonização que opera de maneira desfigurada na formação social de pessoas negras. hooks se coloca em primeira pessoa em alguns trechos desse ensaio para contar como esse tipo de formação afetou seu entendimento social e político. Isso faz com que o texto seja extremamente forte e impactante ao trazer suas percepções reais e pessoais sobre como foi ser uma garota negra do sul estudante de escolas públicas.

Quinto ensaio

No último ensaio, ”Mulheres negras e feminismo”, a autora cita Sojourner Truth, que foi uma brava ativista que desafiou o sistema de opressão apartheista. A política de colonização e o imperialismo racial fez com que fosse impossível que mulheres negras liderassem um movimento de mulheres nos Estados Unidos.

Houveram esforços de outras estudiosas negras para iniciar reformas que fossem benéficas principalmente a mulheres brancas, no entanto esses esforços foram minimizados porque quando o feminismo se direcionou à perspectiva racial, mulheres brancas não se interessam em apoiar. Nesse capítulo bell evidencia a relação de trabalho de mulheres brancas e negras e homens negros na sociedade moderna, fala sobre como a mulher negra na sociedade ainda é alvo para comentários misóginos. Ainda fala sobre as razões que fizeram as mulheres negras não se encorajarem no movimento, considerando o quanto é desafiador ser pioneiras no feminismo negro, e paralelamente vivenciar as violências da sociedade que não promove espaços de libertação para mulheres, sobretudo as negras. 

Conclusão

Em síntese, esse é um livro que mostra que o feminismo negro não é somente para mulheres negras. O feminismo negro liberta as pessoas que estão submersas nos papéis sociais de dominação e opressão sexista. Após a leitura o que fica é a esperança de entender que ainda que a passos de formiga, nós mulheres negras estamos abrindo caminho para que outras possam existir sem serem vitimadas ou amedrontadas.

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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