“Elvis & Madona”: Cultuado romance policial de Luiz Biajoni ganha edição comemorativa após uma década

“Eu percebi que você me ama e que faria qualquer coisa, daria a sua vida por mim. Eu daria a minha vida por você.” – Luiz Biajoni

Publicado em 2021 pela Bazar do Tempo, Elvis & Madona: Uma novela lilás conta a improvável história de amor entre Madona e Elvis. Porém engana-se quem pensar que estamos diante de mais um romance cheios de clichês. Trata-se de uma celebração da fluidez da sexualidade humana, da desconstrução e do redescobrimento do afeto. Elvis é uma mulher cisgênero lésbica que faz uns bicos entregando pizza em Copacabana enquanto seu tão sonhado emprego como fotógrafa jornalística não acontece. Pendendo para o lado burguês da sociedade, ela fugiu de uma pequena cidade mineira quando a heterossexualidade compulsória que seus pais lhe forçavam a fez abandonar tudo e tentar a vida no Rio de Janeiro — local onde talvez ela pudesse se misturar entre os outros freaks noturnos. Madona é uma travesti que trabalha como cabeleireira e que sonha em produzir e protagonizar seu próprio show de teatro. Assim como muitas outras travestis e mulheres trans, Madona se viu cercada de ódio, homofobia, e adiante, após sua transição, transfobia. A aleatoriedade de uma noite de entregas colocou frente a frente duas mulheres carentes de afeto genuíno e de um simples abraço reconfortante. Cada uma, a seu modo, tenta fugir de uma sociedade transfóbica, homofóbica e objetificadora que as tratam “como um pedaço de carne que está ali para gozarem em cima.” (p. 24)

É difícil colocar em palavras a minha felicidade e euforia por estar novamente diante da escrita tão característica de Luiz Biajoni depois de tantos anos — quando li a coletânea A Comédia Mundana: Três novelas policiais sacanas. Ficar diante das palavras de Biajoni foi como reencontrar um grande amigo brincalhão, intelectual, talentoso e desbocado; que depois de uma década parece ter passado por uma reeducação acerca das terminologias referentes à sexualidade e à identidade de gênero, temas tão importantes nos dias atuais, mas que em 2011 — quando a primeira edição havia sido publicada — não estavam em evidência. Para termos uma ideia, à época de seu lançamento o que estava sendo discutido era o beijo gay entre personagens em novelas.

Mas isso não quer dizer que a história de amor entre Elvis e Madona foi higienizada, perdendo toda a sujeira característica das histórias mundanas do autor. Se esse fosse o caso, definitivamente não faria sentido alguém do calibre de Biajoni aceitar o desafio de adaptar o filme homônimo de 2011 dirigido por Laffitte — uma comédia romântica — se não fosse para ressignificar a história, a transformando em uma obra de suspense policial envolvendo traficantes, redações de jornais da imprensa marrom, sexo, violência e uma pitada meio pulp, meio neo-noir à brasileira. Estamos diante de uma obra digna do que eu chamo de Universo BiajonianoOras, quem mais senão Luiz Biajoni poderia escrever que Madona “parecia uma Marlene Dietrich bombada” (p. 53)?

Foto: Acervo pessoal do autor

Elvis sai para entregar uma pizza à noite, e ao chegar no apartamento do cliente se depara com Madona, uma travesti que havia acabado de ser roubada por João Tripé, seu cafetão. Madona conheceu Tripé quando ainda era muito jovem, e como ela foi acolhida pelo malandro quando tudo que recebia da sociedade era ódio, imagina que existe alguma dívida com o sujeito. Após o primeiro encontro, as duas mulheres acabam se tornando grandes amigas, e sem que possam perceber — uma vez que ambas estão presas aos rótulos criados pela sociedade, ou talvez por elas mesmas, no passado — que estão, na verdade, protagonizando o começo de uma grande história de amor. 

Uma verdadeira tomboy quando criança, Elvis pode ser considerada uma butch que está sempre ostentando sua jaqueta de couro em sua moto, e desde a adolescência só se relacionou com mulheres. Madona, sempre foi atraída por homens, desde pequena, quando ainda não havia começado seu processo de transição e era vista pela sociedade como um adolescente gay. Já mulher adulta, essa atração se manteve, logo, ela pode ser entendida como heterossexual. Como vimos, é sintomático que nenhuma das duas tenha sequer cogitado o fato de que aquela amizade tão forte era algo mais profundo. 

Algumas coisas chamam a atenção no romance. O talento do autor em transformar Copacabana em um dos personagens principais da história: as descrições das ruas, dos becos sujos — e do sexo ainda mais sujo que acontece nas sombras ou mesmo à luz do dia —, das das criaturas noturnas à procura de companhia, dos ladrões e dos policiais corruptos traz uma familiaridade para o leitor, mesmo aquele que não mora ou não conhece os locais onde a trama acontece. Existe também um realismo que Biajoni atinge ao incluir nomes famosos no romance. Em determinado momento, por exemplo, João Tripé se gaba de ter usado drogas com Renato Russo, e adiante, um cabeleireiro diz que foi o responsável em cuidar do cabelo de Caetano Veloso quando ele começou a misturar rock com MPB. Até mesmo o falecido ator José Wilker se oferece para colaborar com o tão sonhado show de teatro de Madona. Esses detalhes trazem uma familiaridade. Como se não estivéssemos lendo uma história, mas sim dentro dela, ou melhor, como se se tratasse da vida real. A familiaridade, entretanto, não ocorre apenas na inclusão de nomes conhecidos, mas também por comentários do narrador — obviamente cisgênero — que eram e são feitos em abundância por pessoas em nosso ciclo de amizades. O narrador diz que Elvis, uma mulher magra, branca de olhos azuis e de classe média, era mais solitária e mais triste que as travestis que precisam ganhar a vida nas esquinas. 

Gostei bastante de como as duas personagens principais não são perfeitas. São humanas e com defeitos. Alguns deles poderiam facilmente acabar com a relação. Em alguns momentos, por exemplo, Elvis trata Madona no masculino. Aliás, causa um estranhamento ver a própria Madona se referir a si mesma como pronomes masculinos e usar termos pejorativos. Mas não é apenas isso, por culpa do machismo da sociedade, e talvez mesmo sem perceber, Madona tem comportamentos machistas e antiquados relacionados à ideia da construção de família. Isso, claro, pode ser o resultado de sua falta de estudos e por estar vivendo em uma sociedade transfóbica e machista. Com certeza ela não teve tempo de ler Judith Butler, Kate Bornstein e Leslie Feinberg enquanto fazia programas e apanhava de João Tripé. Por outro lado, é revigorante perceber como ela é genuinamente amada por todos em seu bairro. Todos usam pronomes femininos quando lhe dirigem a palavra ou falam dela. Até mesmo Tripé, o vilão da história, faz questão de respeitar e exaltar a mulheridade de Madona.

Em última análise, é imprescindível termos uma história como a de Elvis e Madona sendo relançada com uma linguagem adequada atualmente no Brasil e redescoberta pelo público mais jovem. O modo como Biajoni escreve essa história de amor entre duas mulheres é um acontecimento, uma celebração do amor sem barreiras, da desconstrução do binarismo e do cisheteropatriarcado em forma de romance policial. São duas almas que “despiram-se das roupas, dos conceitos, dos preconceitos, dos cheiros bons e maus, de qualquer categorização.” (p. 82) em nome do amor. Um amor, arrisco dizer que, juntamente com o violento e eletrizante clímax, foi o maior acontecimento LGBTQIA+ da literatura nacional da última década.


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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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