Erotismo e sexualidade em “69 Poemas e Alguns Ensaios”

“Mas é preciso se entregar ao oceano, sem temor ou dor; porque só existe a dor de não se dar, de não querer se misturar ao mar.” – Sofia Mathias

Publicado em 2021 através de uma parceria entre as editoras Jandaíra e Oficina Raquel, 69 poemas e alguns ensaios reúne 49 mulheres do Brasil em uma coletânea de poemas que explora temas como BDSM, erotismo, feminismo, antirracismo, aceitação corporal, a desfalorização das relações sexuais, além da pornografia — dos efeitos negativos à utilização de filmes adultos dentro de uma relação como ferramenta de ressignificação do ato sexual entre duas ou mais pessoas, independente da orientação sexual.

O livro tem início com alguns (ótimos) ensaios sobre feminismo e transfeminismo (obras que se intitulam feministas sempre ganham pontos quando incluem mulheres trans em suas pautas). Nestes ensaios, muitos deles preconcebidos como zines criadas por mulheres que tentavam ressignificar a pornografia no imaginário feminimo, existe — também no livro como um todo — uma clara tentativa de descigenerizar não apenas a literatura, mas também o gênero poesia erótica — ainda que em determinado momento uma das autoras decida, por alguma razão, usar a vagina como documento de validação das mulheridades alheias. 

Apesar de o número ser consideravelmente menor ao número de poemas, os ensaios — que possuem belíssimas ilustrações de Clara Zúñiga funcionando como telas de exposição (e como artifício expositivo narrativo), são ao meu ver o ponto alto do livro. Um destes ensaios, intitulado de “a mulher que goza é uma mulher marginal: lendo literatura erótica” — o meu favorito, aliás —, narra a história da criação de um grupo de leitura erótica só para mulheres em que obras do século 18 e 19 eram a base dos encontros. No ensaio em questão, Isadora Sinay detalha, enquanto cita livros de autoras como Sylvia Plath, Simone de Beauvoir, e Jane Austen.

Muitos poemas tratam o corpo feminino não como uma floresta de mata virgem que existe apenas para ser explorada, desmatada, e sim como um templo a ser adorado, acariciado, com calma e com habilidade, sem objetificação ou exotização. O conceito de relacionar pelos pubianos avantajados com florestas, aliás, é abordado soberbamente no poema “rapunzel contemporânea” quando a autora Lindevânia Martins demonstra que o tempo das mocinhas à espera do príncipe salvador já não existe mais. Em muitos poemas as partes do corpo feminino funcionam — e são utilizadas — como partes abstratas de um quebra-cabeça antirracista, feminista e decolonial. Estes detalhes saltam aos olhos com uma força poética bem maior do que alguns dos versos — maravilhosamente — despidos de qualquer pudor e bem mais explícitos.

Algo interessante nesse livro majoritariamente composto de poemas e ensaios w4w (women for women, ou mulheres para mulheres em tradução livre, que pode significar “mulheres — cis ou não — que se relacionam sexual, emocional ou romanticamente apenas com outras mulheres — novamente, cis ou não —, é que quando o homem é usado como inspiração nos poemas ou é como uma tentativa de desconstrução do que é considerado o padrão sexual ou sensual esperado pelo homem em uma sociedade falocêntrica, ou como um ser desprovido da habilidade de proporcionar prazer às mulheres. 

Os poemas, em sua maioria, são curtos e muitos deles funcionam como uma espécie de lente desmistificadora da sexualidade masculina que direcionam nossos olhares para outros modos de obter e dar prazer sexual que não sejam intrinsecamente relacionados ao falo que, não necessariamente masculino, é muitas vezes utilizado no próprio homem. É importante destacar que o falo aqui não precisa ser literalmente um pênis, podendo ser um dedo, dois dedos, ou até mesmo o braço inteiro. Em outras palavras, são poemas que deixariam Gayle Rubin e Michel Foucault orgulhosos, principalmente o último, “Proposta”, em que a autora escreve com violência sobre o ato sexual que vem carregado de dor, e que usa e abusa dos acessórios sadomasoquistas que farão o leitor repensar suas noções preconcebidas sobre a sexualidade, bem como o ato sexual em si, uma vez que muitos poemas estão aqui para subverter e transgredir ideias heteronormativas.


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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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