Análise da adaptação cinematográfica “Ficção Americana” e do romance “Erasure”

Direção e Roteiro: Cord Jefferson. Elenco: Jeffrey Wright, Tracee Ellis Ross, Issa Rae, Sterling K. Brown, John Ortiz, Leslie Uggams, Adam Brody, e Keith David. 

Nota: ★★★☆☆

Dirigido pelo estreante Cord Jefferson, Ficção Americana é uma comédia dramática de 2023 que narra a vida de Thelonious “Monk” Elison (Jeffrey Wright), um professor de literatura e escritor norte-americano que além de problemas relacionados ao trabalho, precisa lidar com dramas familiares, entre eles os primeiros estágios da demência da mãe Agnes (Leslie Uggams) que vive com sua irmã Lisa (Tracee Ellis Ross), além da recém homossexualidade de seu irmão mais novo Cliff (Sterling K. Brown), e por último, os efeitos que o suicídio do pai causou em sua família.

Quando a narrativa se inicia, Monk está prestes a ser dispensado de seu trabalho de professor após uma série de reclamações sobre sua conduta nervosa em sala de aula — cujo ponto alto acontece em uma aula sobre o aspecto racial na literatura Southern Gothic, mais precisamente quando uma aluna branca o questiona sobre a decisão de usar o conto The Artificial Nigger da escritora norte-americana Flannery O’Connor em uma de suas aulas. Aconselhado por seus superiores a tirar um tempo para esfriar a cabeça, ele decide visitar a mãe e a irmã Lisa, que vivem em Boston, onde ele irá participar de um seminário literário.

Ao perceber que o fracasso de seu seminário está diretamente relacionado ao fato de que no pavilhão ao lado acontece uma palestra com Sintara Golden (Issa Rae), uma autora cujo livro best-seller We’s Lives in Da Ghetto (Nóis veve no Gueto, em tradução livre) reforça os diversos estereótipos raciais odiados por ele, Monk precisa lidar com pesadelos literários e familiares: seus romances — adaptações modernas do teatro grego clássico — são sempre sucesso da crítica, mas são constantes fracassos de vendas, e por isso é pressionado por Arthur (seu agente literário interpretado pelo sempre ótimo John Ortiz) a escrever algo similar ao que Sintara Golden escreve, que apesar de não conter a qualidade literária de seus trabalhos sérios, possivelmente será um sucesso de vendas — um detalhe que apesar de ter sido pensado por Everett no início dos anos 2000, dialoga diretamente com a geração literária que é formada por sucessos intelectualmente vazios do TikTok.

Precisando de dinheiro extra para internar a mãe em uma clínica especializada em pacientes com demência, Monk transforma-se em Stagg R. Leigh, um pseudônimo que funciona como uma espécie de Victor Frankenstein e cria seu próprio monstro literário, um romance chamado My Pafology: uma sátira social que nas entrelinhas critica aquilo que ele mais odeia: autores negros que aceitam perpetuar estereótipos que serão consumidos por brancos, e os editores brancos que lucram com a dor negra. Muitos destes romances, inclusive grandes sucessos YA da atualidade, possuem narrativas que são populadas por personagens que reforçam estereótipos da população negra: rappers estupradores, pais estupradores de suas mulheres e filhos, pais que abandonam suas famílias, viciados em drogas, traficantes, adolescentes negras grávidas, violência policial, etc.

O que Monk não esperava era o sucesso imediato do manuscrito de My Pafology. Uma grande editora oferece um contrato de milhares de dólares. Irritado por seu romance de mentira vender mais que seus romances sérios, ele decide mudar o título de My Pafology para FUCK, mas para sua surpresa, a editora aceita seu pedido, e em seguida, um acontecimento ainda melhor — ou mais desesperador — ocorre: Wiley Valdespino (Adam Brody), um diretor branco de Hollywood faz uma oferta milionária pelos direitos do romance, que em breve se tornará uma superprodução cinematográfica. Diante da oportunidade, Monk decide assumir a identidade de Stagg R. Leigh — decisão que o prenderá em uma teia literária de mentiras catastróficas que podem destruir sua vida familiar, amorosa e profissional. A situação se agrava quando Monk aceita o convite de ser um dos jurados de um Prêmio Literário, apenas para descobrir que FUCK, está concorrendo ao prêmio e é um dos favoritos, e que Sintara Golden também foi chamada para ser uma das juradas. A princípio Monk começa a repensar quais são os méritos literários da escritora, e como alguém como ela, que escreve romances caricaturais, pode julgar as qualidades de romances sérios, mas com o passar do tempo ele se surpreende ao perceber que ela possui uma aguçada consciência política e racial, e que assim como fez Richard Wright, apenas escreve o que vende — o que os brancos querem ler.

Adaptação do soberbo romance Erasure, de Percival Everett, publicado em 2001 — que por sua vez nasceu como uma crítica resposta às “Guetto Novels”, entre eles Filho Nativo, de Richard Wright, publicado em 1940, e Push, de Sapphire, publicado em 1996 —, “Ficção Americana” segue o mesmo caminho de Erasure, satirizando e denunciando os romances e filmes considerados “Black Trauma Porn”, que de forma sucinta podem ser classificados como produções rasas e estereotipadas que exploram — não de forma literária, mas, sim, literalmente — a tragédia na vida das pessoas negras. É importante destacar que décadas após sua publicação, Push foi adaptado para o cinema como “Preciosa: uma história de esperança”, um pavoroso filme de Lee Daniels de 2009, que apesar de ter sido bombardeado com críticas negativas justamente pelo modo caricatural, estereotipado, melodramático e desrespeitoso que retratava a vida das pessoas negras, acabou virando um sucesso financeiro, provando o ponto de que a negritude — entendida pelos brancos como uma patologia — era e sempre será lucrativa.

Metalinguístico — como não poderia deixar de ser —, o filme lida de forma relativamente eficaz com a metalinguagem de Erasure, e aqui é preciso fazer a minha própria metalinguagem e pausar o texto para escrever um novo texto que servirá para contextualizar o leitor: no momento em que Monk começa a escrever seu romance negro em Erasure, Everett pausa a narrativa principal e escreve cerca de 100 páginas daquilo que viria a ser seu romance de protesto/sátira protagonizado por Van Go Jenkins, um jovem traficante negro e estuprador de 19 anos que precisa lidar com a pobreza, violência policial e o fato de ter 4 filhos com 4 mulheres diferentes. Ou seja: Percival Everett decidiu escrever My Pafology (um romance que por sua vez já parodiava Filho Nativo, e seu protagonista, Bigger Thomas, que Richard Wright escreveu tendo em mente os leitores brancos) em sua íntegra dentro de seu romance principal — que por sua vez já era uma sátira social. 

A solução encontrada por Cord Jefferson para abordar o livro dentro do livro é paradoxalmente acertada e equivocada: acertada por retratar apenas uma cena de Van Go Jenkins (Okieriete Onaodowan) no filme, não o transformando em uma produção com 3 horas de duração; mas equivocada por ser o caminho mais fácil, seguro e desinteressante — e ainda que filmada de modo criativo — se pensada na grandiosidade e na riqueza intelectual e literária do romance de Everett. Por falar em caminhos mais fáceis, não deixa de ser irônico terem escolhido Jeffrey Wright, um ator negro de pele clara para um papel cujo personagem se descreve como negro de pele escura, cabelos crespos e nariz largo — uma descrição que poderia estar descrevendo alguém que literalmente estava ao seu lado durante grande parte do filme: Sterling K. Brown. Em outras palavras, o filme parece fazer justamente o famigerado colorismo cinematográfico tão corriqueiro nas produções norte-americanas: preterir atores negros de pele escura, deixando o protagonismo para os negros de pele clara.

Talvez a falta de experiência de Cord Jefferson atrás das câmeras — cuja carreira até então se resumia a créditos como roteirista em séries de sucesso como “The Good Place”, “Master of None” e “Watchmen” — possa justificar suas decisões artísticas e estéticas ao reformular sequências e acontecimentos importantes em seu filme, alguns deles, aliás, sem qualquer motivo aparente, entre eles mudar o modo como um importante personagem morre, ou nome de alguns personagens: Bill (que virou Cliff), Juanita Mae Jenkins (que virou Sintara Gold). Logo, ficamos sempre com uma sensação de “e se?” na mente. E se Cord Jefferson tivesse tido a coragem de parar totalmente o filme para que a história de Van Go Jenkins pudesse ter sido explorada — e assim criando um filme dentro do filme? Com certeza estaríamos diante de uma produção totalmente diferente, única e corajosa. Curiosamente, o caminho mais fácil escolhido pelo diretor acaba enfraquecendo os aspectos dramáticos e humorísticos da história, visto que é na vida de Van Go Jenkins que se encontram os grandes momentos dramáticos e as melhores piadas de Erasure. 

Mas ainda sim, o fiapo de humor remanescente em “Ficção Americana” não deixa de ser eficaz, como por exemplo a sutil, mas engraçada piada relacionando o vício em bebida de Cliff com Whip Whitaker, personagem interpretado por Denzel Washington em “O Vôo”, filme de 2012 dirigido por Robert Zemeckis; ou, ainda, o fato de Monk ser recusado por um taxista branco no momento em que diz “eu não acredito em raça” ao telefone — piada cuja punchline retorna no final do filme, quando ele consegue finalmente pegar um táxi, mas em uma cena imaginária.

Apesar de ser classificado como uma comédia dramática, o drama — ou melhor, o melodrama, aqui usado não como um elogio Douglassirkiano, mas sim como algo pejorativo quase Tylerperryano — enfraquece o início da narrativa, visto que as mãos descalibradas de Cord Jefferson escrevem não uma, mas duas tragédias familiares que acontecem nos primeiros 20 minutos da obra, diluindo o impacto dos acontecimentos no protagonista e o espectador, já que não tivemos tempo o suficiente para criar uma conexão com os personagens. Como resultado, duas tragédias que deveriam funcionar como grandes eventos, acabam sendo esvaziadas emocionalmente. Apenas para contextualizar, em Erasure as duas tragédias acontecem quase na metade do romance, nos dando tempo de sobra para nos apegarmos aos personagens e sentirmos o efeito de suas mortes. Por outro lado, Cord Jefferson acerta ao remover quase que totalmente um subplot envolvendo as traições do pai, o encontro de Monk com um neonazista que pode ser seu primo, e uma meia-irmã branca que ele não conhecia — detalhes que apesar de serem interessantes no livro não fariam falta no contexto do filme. 

Se nos parágrafos acima critiquei algumas das várias decisões do diretor, é importante ressaltar seus momentos de acerto, como por exemplo o modo como ele decide manter Monk sempre posicionado nas extremidades da tela, indicando seu esmagamento psicológico diante das constantes tragédias — familiares e profissionais — em sua vida, ou a necessidade de um apoio psicológico. Outro momento sutil é o modo como o diretor faz uma rima visual entre os pés impacientes de Monk enquanto este espera uma notícia em um hospital, e um plano-detalhe em primeiríssimo plano dos pés imóveis de um cadáver. Sutileza, aliás, é o ponto alto da construção de Monk por Jeffrey Wright — um ator magnífico que muitas vezes é enterrado em papéis minúsculos em superproduções como “007”, “Jogos Vorazes” e “The Batman”. Diversas vezes durante o filme o ator usa expressões faciais quase que imperceptíveis, sejam elas para indicar felicidade, surpresa ou tristeza — algo totalmente diferente de seu comportamento na sala de aula.

O filme também aborda temas como a liberdade intelectual de escritores negros que querem ser conhecidos universalmente e não apenas como escritores de livros sobre negritude — um tema que foi abordado há muitas décadas por James Baldwin, que assim como Monk, se recusava a ser reduzido a um autor das causas negras, e ser conhecido como um mero escritor de “Protest Novels”, como foi o caso de Richard Wright — cujo supracitado Filho Nativo fora severamente criticado por Baldwin em uma de suas reviews. Outro importante tema abordado no filme é a liberdade sexual dos homens negros, que aqui ganha destaque através da homossexualidade de Cliff, um sujeito que enfrenta um divórcio desastroso após ser flagrado na cama com um homem pela esposa. De modo geral, o subplot de Cliff dialoga com a já histórica e infame homofobia dentro da comunidade negra, bem como a heterossexualidade compulsória e a sua relação com a religião — papel simbolizado por sua mãe homofóbica.

Em última análise, “Ficção Americana” pode não ser perfeito — e talvez merecesse um diretor mais experiente capaz de trabalhar com mais atenção o texto de Percival Everett —, mas cumpre seu papel de criticar com uma dose razoável de humor os autores negros que se rendem ao maquinário capitalista literário norte-americano, bem como a culpa branca dos leitores. De modo sintomático, não deixa de ser irônico o fato de Cord Jefferson — um negro de pele clara — ter usado como base para seu filme um livro cujo título é “Erasure” — que pode significar apagamento e eliminação — ao mesmo tempo em que apagava e eliminava a possibilidade de um ator negro de pele escura estrelar uma produção indicada a vários prêmios cinematográficos, entre eles o Oscar de Melhor filme, Melhor ator (Jeffrey Wright), Melhor ator coadjuvante (Sterling K. Brown), Melhor trilha sonora, e Melhor roteiro adaptado (categoria vencida por Cord Jefferson).

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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