‘Garota, mulher, outras’: o mosaico literário de Bernardine Evaristo

Pensar a literatura como um registro de um tempo é uma maneira muito interessante de se lidar com a mesma. Esse tempo pode ser o da pessoa que escreve ou um tempo resgatado. E um dos grandes ganhos de se pensar a literatura de tal forma é a compreensão de que sempre lemos sobre determinado tempo histórico e seus dilemas a partir de diferentes prismas. Afinal, alguns autores podem até olhar para um mesmo objeto com perspectivas aproximadas, mas é esperado que cada um enxergue as diversas questões de uma época com um olhar próprio, a partir de seu repertório e preocupações. E é isso que a escritora anglo-nigeriana Bernardine Evaristo (também) faz em seu excelente Garota, mulher, outras, com edição brasileira pela Companhia das Letras e ótima tradução de Camila von Hodelfer.

Evaristo situa seu romance em um momento no qual Donald Trump ainda é presidente dos Estados Unidos da América e o Brexit um tópico que chama a atenção de todo o mundo, em especial do Reino Unido – o romance se passa em Londres. Entretanto, não são esses eventos que ela busca narrar, mas sim a história de vida de diversos personagens que compartilham a existência neste mesmo período. Personagens esses que têm suas trajetórias interligadas direta ou indiretamente, construindo, por fim, um grande mosaico. Com isso, a autora nos expõe ao cotidiano de um tempo conturbado, mas a partir de seus bastidores, nos mostrando que apesar do todo, o universo particular de cada um segue funcionando normalmente, mesmo que influenciado ou influenciando – ou não – os rumos que se seguem. Olhamos para esse tempo histórico, mas por outras frestas.

Garota, mulher, outras aborda questões pertinentes à contemporaneidade. Questões que não são só de hoje, é verdade, mas que seguem em voga. Portanto, a todo momento os personagens do romance estão diante de situações que os fazem refletir sobre os seus lugares no mundo, sobre identidade ou sobre as suas relações afetivas e familiares. E esses dilemas são tratados a partir de locais bastante plurais. Inclusive, uma das coisas que chamam a atenção no romance é justamente a maneira como mais de um personagem enxerga um mesmo ocorrido, nos lembrando que por vezes a verdade pode ser a interjeição de leituras diferentes de certa situação ou até mesmo algo totalmente distante do que cremos, mostrando que a nossa dose pessoal de egoísmo pode fazer com que a nossa visão dos fatos se torne algo ao menos turva.

Créditos da imagem: Ruth Ossai / The Sunday Times Style. Fonte: Melan Mag

Bernardine Evaristo traz para o cerne do seu romance diversos conflitos e preocupações presentes na nossa história recente e que têm grande impacto na sociedade, em especial para as mulheres: imigração, pertencimento, questões de gênero, feminismos, a violência contra a mulher, questões raciais, relacionamentos abusivos etc e etc. Tudo isso com muita originalidade e competência, tratando com classe os aspectos de caráter mais efêmero dessas manifestações. E a autora consegue lidar com esses temas atuais e tão frescos de modo que não é nem forçado, nem oportunista. Mesmo o que poderia já soar datado em Garota, mulher, outras é trabalhado com muito cuidado e atenção, com isso, obtendo essa qualidade de registro de um tempo.

Vale também mencionar que o olhar atento ao hoje presente no romance facilita na identificação com a história – ou histórias – narrada nele. Algumas similaridades sociais, raciais e culturais entre as realidades britânicas e brasileiras estreitam a distância imposta pelo Oceano Atlântico. É fácil nos reconhecermos nos dilemas de Anna, nos deslumbramentos de Yazz ou nas frustrações profissionais de Shirley. Conhecemos histórias como a de Bummi ou de Dominique. Até mesmo as vivemos. São acontecimentos que se replicam aos montes, mesmo que com suas especificidades. Entretanto, o grande trunfo de Garota, mulher, outras é a escrita excepcional de Evaristo. A autora, fazendo jus à sua ocupação como professora de escrita criativa na Universidade de Brunel, dá uma baita aula em seu romance. Do já mencionado cuidado no trato com os fatos de nosso tempo aos detalhes, ela brilha. Faz-se oportuno mencionar algo que o ficcionista Josué Guimarães disse certa vez para Assis Brasil: “se o personagem morre de tuberculose pulmonar no décimo capítulo, deve ter tossido um pouco no quarto capítulo, ter baixado no hospital no sétimo, até morrer naturalmente no décimo.” Evaristo faz isso com primor! Não existem pontas soltas em seu texto. Além disso, a forma de Garota, mulher, outras é inventiva: a autora escolhe fazer uso de um gênero híbrido, composto por versos livres, embora seja escrito em prosa, construído em blocos e sempre se aproveitando de um ótimo ritmo. E mais: não há pontos finais e as letras maiúsculas só aparecem em nomes próprios.

Ao tratar de questões tão caras e sensíveis ao nosso tempo, aliado a um trabalho de linguagem excelente, Bernardine Evaristo faz de seu Garota, mulher, outras um trabalho vigoroso que rouba a cena no universo literário atual. Ao voltar seus olhos para as complexidades das relações interpessoais e para as múltiplas possibilidades do ser humano, Evaristo lança luz sobre as singularidades que formam o todo. São as pequenas revoluções que acontecem no micro que transformam o macro. Indo além, ela também nos lembra que aquilo que se deu em algum momento de nossas vidas podem influenciá-las permanentemente. Somos produtos de todas as experiências que vivenciamos. As feridas, as alegrias, os traumas etc. Tudo isso pode definir quem somos ou seremos. Portanto, por mais difícil que seja lidar com o outro – afinal, lidar consigo mesmo já é tarefa árdua o bastante –, é importante se ter em mente que por vezes não fazemos a mínima ideia daquilo que se passa com o outro. E que essa pequena chave virada é a chave que aciona uma engrenagem maior, que por sua vez propulsiona outra engrenagem maior ainda, seguindo assim, num fluxo contínuo que dá origem aos movimentos que fazem a história caminhar, seja pisando em falso, seja pisando sem vacilar.


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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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