James Baldwin e seus ensaios reflexivos em “Dark Days”

Ler James Baldwin é uma tarefa excruciante: por sua obra abordar, em menor ou maior grau, a homofobia, o [não] lugar do negro na sociedade norte-americana, o racismo incessante sofrido pelos negros durante séculos. Nesse soberbo Dark Days fica evidente que o racismo escolhido por Baldwin para vociferar sua revolta é o institucional, mais precisamente a ramificação que vem castigando alunos negros desde o momento em que colocam os pés em uma escola pela primeira vez.  Sabemos que estaremos frente a frente com um texto que será dolorido, principalmente se o leitor se considerar antirracista. A escrita de James Baldwin causa revolta devido à sua infeliz atemporalidade, e digo infeliz pelo fato de seus livros terem sido escritos décadas atrás, mas ao lermos o autor no presente, sentiremos não apenas tristeza, mas também uma impotência esmagadora ao perceber que a maioria dos problemas enfrentados por ele no passado ainda continua acontecendo sistematicamente com o aval do governo. 

Em Dark Days, escrito na década de oitenta, e ainda sem tradução para o português, o autor, já com uma carreira consagrada aos sessenta anos, reflete sobre sua vida escolar, seus professores, suas influências, um quase amor com um amigo quando ambos estavam na faixa dos vinte anos, e que ele descreve com um devastador arrependimento de não ter se deixado levar pelos seus sentimentos; e mais profundamente, no último ensaio, a dificuldade do branco em se reconhecer como o responsável pela escravidão e pelo racismo. O livro é composto de três ensaios, e em cada um deles, Baldwin direciona sua ira a um ou mais temas citados acima. O primeiro, que dá nome ao livro, é usado pelo autor como uma espécie de micro biografia, visto que ali ele relembra sua vida a partir dos sete anos de idade, quando, durante a grande depressão americana, ele percebeu de forma precoce o quão afundado em uma fantasia de superioridade (criada por ele próprio) o homem branco de fato estava; e como alguns negros, por viverem dia após dia nessa fantasia como vilões, acabavam internalizando essa culpa, e desenvolvendo uma espécie de variação do que Paulo Freire chamou de “anestesia histórica”. Essa anestesia tinha como resultado o desinteresse da população negra, que havia até pouco tempo, lutado pelo direito ao voto, e que agora se mostrava desesperançosa com a política.

Dark Days
Nesse primeiro ensaio, um dos detalhes mais interessantes é a comparação que o autor faz da sua infância nos anos vinte com a infância das crianças nos anos sessenta. Segundo o autor, sua geração não sofreu tanto com a pobreza, pois como eles não possuíam aparelhos de TV em casa, eles não eram bombardeados diariamente com o glamour das mansões dos filmes que assistiam as crianças na década de sessenta, e como consequência, sua geração não sabia de fato que era pobre, pois não faziam comparações das suas vidas com as vidas de mentira nos filmes, e porque no Harlem todo mundo era igualmente pobre. Mas ao falar do Harlem, Baldwin não nos reserva apenas tristeza. Ao relembrar sua educação, ele escreve sobre seus professores com um singelo tom de agradecimento: aos professores brancos, que segundo ele eram todos antirracistas, socialistas e de esquerda; e aos professores negros, que mesmo sendo lacônicos com relação à política, eram figuras remanescentes do Harlem Renaissance, e não obstante, sabiam explorar e instigar a inteligência dos jovens alunos, e com todas as suas forças, os faziam acreditar que tinham um futuro brilhante pela frente apesar do sistema educacional americano, que nas palavras de Baldwin, “é, em suma, projetado para destruir a criança negra. Não importa se o destrói o drogando no gueto ou o deixando louco no isolamento de Harvard” (p. 13).

Mas não é apenas aos professores que Baldwin dedica toda a sua admiração e agradecimento, pois ele não deixa de reconhecer que antes mesmo de colocar o pé em uma sala de aula, sua educação já havia sido iniciada pelas senhoras que moravam no seu bairro, visto que de acordo com o autor, em lugares como o que ele vivia, era comum o fato de que todas as mulheres se comportavam como as mães de todas as crianças que corriam pela rua. 

O autor termina o ensaio de modo certeiro ao afirmar que o homem branco não consegue aceitar a liberdade do homem negro porque ao fazer isso, ele, o branco, precisa também assumir ser o culpado de tudo de ruim que aconteceu e acontece com o a população negra americana, e só assim tornando-se livre. E ver o povo negro livre é algo que o branco definitivamente não quer, mesmo que isso signifique a privação da própria liberdade.

The Price of the Ticket
Baldwin começa o segundo ensaio evocando memórias do início de sua carreira literária. Ou melhor, a dificuldade em dar início à sua carreira literária, pois veja bem, James Baldwin não cursou faculdade. De modo que ele era constantemente escorraçado das redações pelos tão inteligentes e diplomados jornalistas brancos. Se ao primeiro momento temos a impressão de que Baldwin, após abordar os efeitos do racismo institucional no primeiro ensaio, direcionaria sua raiva ao racismo estrutural, somos pegos de surpresa, porque aqui ele escreve um dos ensaios mais tristes de sua carreira ao relembrar como anos e mais anos sofrendo com vários tipos de ódio o fizeram achar que não era digno de amor. Baldwin sofria bullying constantemente, ora por causa da sua cor, ora por causa de seus olhos esbugalhados.

Nesse trecho do ensaio, Baldwin escreve com um rancor pesadíssimo sobre um [quase] amor aos vinte anos. Apaixonado por um rapaz chamado Eugene, o autor ignora uma declaração de amor por se achar não ser merecedor de tal sentimento. A dor de Baldwin — e por consequência, a nossa, ao sermos informados de que Eugene cometera suicídio ao pular da ponte George Washington dois anos mais tarde — é avassaladora: “quando ele morreu, percebi que teria feito qualquer coisa para ser capaz de segurá-lo neste mundo” (p. 25). Ler esse relato do autor nos faz perceber que o famoso ditado “a gente só dá valor quando perde” se aplica a qualquer ser humano desse planeta repleto de pessoas que dariam tudo para serem amadas, mas que quando de fato o são, não perdem a primeira oportunidade de, arbitrariamente, estragar tudo.

A guerra, e por consequência, o exército americano também são alvos da ira do autor, que usando seu irmão como ponto de partida, examina o efeito da carnificina nos corpos negros, que para começo de conversa, só aceitavam se alistar para fugir do racismo, mas acabavam enfrentando o racismo também no exercito; e em seu retorno — quando retornavam — precisavam enfrentar não apenas o homem branco e racista, como também o estresse pós-traumático. Usando a recusa de alistamento de Muhammad Ali como gancho (sem trocadilhos), Baldwin passa a falar do tratamento que o homem negro recebe da sociedade americana, e aqui ele é veemente ao escrever que para o homem negro, o conceito de traição ao país não existe porque “você não pode trair um país que você não tem” (p.30). Ao discutir as origens do linchamento, Baldwin é novamente certeiro ao escrever que o ódio aos negros não é algo que nasce com o branco. Pelo contrário, o ódio ao negro é explicitamente inserido na população por quem comanda o Estado, “que cria e manipula a multidão” (p. 37). Baldwin continua: “A ideia do negro como propriedade, por exemplo, não vem da multidão. Não é uma ideia espontânea. Ela não vem das pessoas […] essa ideia vem dos arquitetos da América. Esses arquitetos decidiram que o conceito de propriedade era mais importante — mais real — do que as possibilidades do ser humano.” 

The White Man’s Guilt
Curiosamente, o mais poderoso dos três ensaios é o mais curto de todos. Em apenas oito páginas, Baldwin reúne todas as forças, todo o seu talento e todo o seu rancor para analisar como o homem branco falha miseravelmente em reconhecer seu papel na escravidão, e como consequência, no racismo; de como o homem branco propositalmente escolhe ignorar a história, porque se não o fizer, ele vai precisar reconhecer sua culpa. O homem branco não se enxerga, em momento algum, como o culpado em relação à criação do racismo e seus devastadores efeitos, porque isso seria se enxergar como vilão, porque se isso acontecer, se o homem branco se ver livre da culpa, significa que o negro também estaria livre.

Como escreveu Toni Morrison em Playing in The Darkness: Whiteness and the Literaly Imagination, o conceito de liberdade não emergiu em um vácuo, portanto, é sintomático que o homem branco, para poder continuar se sentindo confortavelmente inabalável no alto dos seus privilégios, prefere continuar ao mesmo tempo preso no emaranhado e espinhoso ambiente das raízes da sua fantasia de superioridade, e livre da obrigação de reconhecer a sua culpa pela escravidão e pelo racismo; e ainda não sendo necessariamente racista, ele vem se beneficiando de um projeto que tem como uma única função retirar todos os traços humanos da população negra. Ao se perceber próximo de uma possível libertação do homem negro, ele, o homem branco se encontrará frente a frente com um de seus piores pesadelos, que é sua percepção acerca da sua própria identidade, que foi pragmaticamente estruturada tendo como base a fantasia de que o homem negro é inferior, logo, assim que os negros conseguirem sua tão merecida liberdade, o branco precisará recorrer à uma nova realidade, uma vez que sua superioridade inventada não existirá mais, o fazendo ter que reconstruir do zero a sua personalidade.

Em última análise, Dark Days é um primoroso exemplo de que não existe nada mais prazeroso, esclarecedor e obrigatório do que um James Baldwin com raiva, com fúria, — com The Fire Next Time sendo provavelmente seu texto enfurecido mais famoso —, portanto, é de extremamente frustrante que ainda não exista uma tradução para o português para a maioria de seus ensaios. Espero que não tenhamos de esperar décadas por uma edição brasileira.


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4 respostas

  1. Belo texto! Já quero ler o livro, mas assim como o autor do texto, espero que não demore décadas para ser traduzido!

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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