Os personagens brancos de James Baldwin em “O Quarto de Giovanni”

Lançado em 1956, O Quarto de Giovanni, segundo romance de James Baldwin, conta a história de David, um rapaz americano que vive em uma Paris do pós-guerra enquanto Hella, sua namorada, se encontra em viagem pela Espanha repensando o futuro de seu relacionamento. David precisa lidar com suas frustrações relacionadas à sua sexualidade e ao seu relacionamento com Giovanni, um garçom italiano que ele conheceu em um bar gay. Após se conhecerem, David passa a viver com Giovanni, porque mesmo sendo de família de classe média, seu pai se recusa a enviar o dinheiro do filho. Somado aos detalhes acima, ainda existe um aspecto que transforma o romance em tragédia: Baldwin estabelece, já nos primeiros parágrafos, todo o rumo da história: Giovanni está morto e Hella abandonou David, partindo para os Estados Unidos. Para David, o que sobra é a solidão. O livro recebe esse título porque grande parte da trama acontece dentro do quarto do rapaz italiano. 

A estrutura do romance é um espetáculo à parte. No presente, no período de um dia, David relembra seu relacionamento conturbado e trágico com Giovanni e Hella, e em apenas algumas páginas, Baldwin vai do presente para o passado recente, depois para o futuro, e em seguida regressa a um passado ainda mais longínquo, na adolescência do protagonista para falar de sua primeira experiência sexual com outro homem. Deliberadamente confusa, a estrutura do livro desorienta o leitor, pois remete à mente e à indecisão de David, que se encontra em um não lugar dentro de sua própria sexualidade — problema causado por uma sociedade que faz com que os homens tenham que vestir sua masculinidade como se fosse uma armadura que os protegem de seus sentimentos e desejos. E como já sabemos que Giovanni está morto — executado na guilhotina por causa de um assassinato —, isso, evidentemente, cria em nós uma aflição ainda maior, pois à medida que Baldwin alterna entre passado e presente, ficamos à sua mercê, especulando quando Giovanni será executado, quem, como e por que ele matou, como ele passou sua última noite, etc.

Após Go Tell It On the Mountain, seu romance de estreia, publicado em 1953, e Notas de um filho nativo, sua primeira coleção de ensaios, publicada em 1955, James Baldwin publica O Quarto de Giovanni muito antes da Revolta de Stonewall, que foi o acontecimento catalisador dos movimentos pela libertação dos direitos LGBT no final dos anos 60, como uma tentativa de provar para o público que ele não era “apenas” um autor que falava de questões raciais. Portanto, é sintomático que todos os personagens — com exceção de Joey, que é negro, e de Hella, que é mulher — sejam homens brancos vivendo na Europa.

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David é um rapaz loiro que vai para Paris tentando escapar de uma série de sentimentos: o ódio pelo pai homofóbico e machista; seus desejos pelo já citado Joey, um amigo negro do bairro que foi sua primeira experiência com outro homem; e por último, a morte da mãe. Já Giovanni, é um italiano que foge de sua vila, abandonando a esposa após uma tragédia familiar. A questão de classe também aparece adiante na trama e ganha dimensões dramáticas quando David passa a viver com Giovanni. Curiosamente, há um paradoxo, pois uma inversão de papéis acontece: mesmo sendo de classe média e burguês, David é quem passa a viver e ser dependente de Giovanni, um imigrante italiano pobre, fazendo o papel de dona de casa — o fato de Giovanni ser abertamente bissexual e misógino é um ponto importante abordado por Baldwin, demonstrando que homens bissexuais não estão livres de serem sexistas, apesar de eles também serem vítimas do heteropatriarcado. Um adendo: é preciso ter em mente que o conceito de bissexualidade que existe hoje em dia não existia do mesmo modo na década de 50, logo, nenhum dos personagens do livro se entendem como bissexuais, nem possuem a mesma percepção e o mesmo entendimento de gênero e sexualidade como nós, os leitores atuais. Até mesmo James Baldwin não se sentia confortável com rótulos de identidade sexual.

O Quarto de Giovanni pode parecer uma simples história de amor e tragédia entre dois homens com tons shakesperianos em uma época onde esse tipo de amor era considerado um crime, entretanto, se prestarmos atenção nas entrelinhas, encontraremos uma interessante discussão sobre tópicos em evidência atualmente, mas que sequer existiam àquela época: bissexualidade, transsexualidade, performance, identidade e fluidez de gênero. Algo interessante — e que infelizmente é ainda comum dentro da comunidade LGBTQIA — é o modo quase profético que James Baldwin escreve sobre como os gays brancos da época se viam como superiores a todes dentro da própria comunidade, sendo David o exemplo principal, já que ele, graças a sua passabilidade heterossexual, se vê como superior aos gays afeminados, às mulheres trans, às drag queens e os praticantes de crossdressing. O comportamento de David, apesar de ser reprovável, é perfeitamente compreensível se levarmos em consideração a negação de seus desejos e sua bifobia internalizada, além de que qualquer tipo de comportamento sexual visto como uma ameaça ao status quo era entendido como desvio de caráter na época em que o livro foi escrito. 

James Baldwin e William Shakespeare

Podemos entender que os preconceitos de David são resultantes de homofobia e bifobia internalizadas, uma vez que homens gays afeminados e mulheres trans sendo abertamente felizes com sua sexualidade e identidades de gênero acentuam seu próprio fracasso em aceitar quem ele é, e isso talvez explique sua indecisão em abraçar seus desejos e viver com Giovanni. Curiosamente, David usa como desculpa o fato de que uma relação entre os dois estaria fadada ao fracasso naquela época. Já um relacionamento com Hella significaria recuperar sua masculinidade, mas às custas de sua identidade sexual em uma vida de adequação à cisheteronormatividade matrimonial branca de classe média, que entende como sucesso uma casa com piscina, filhos e uma esposa submissa. Ademais, precisamos entender que sua dificuldade em entender e aceitar sexualidades e masculinidades que não são pautadas pela cisheteronormatividade são causados pelo pensamento patriarcal da época e da criação recebida pelo pai, já que para David, homens precisam ser exclusivamente não apenas masculinos, mas sim o que hoje em dia e chamado de macho alfa — inclusive em relações biafetivas —, o que talvez explique seu relacionamento com Hella, que usa cabelos curtíssimos (em certo momento, por exemplo, ao voltar da Espanha, Hella chega mesmo a implorar para que David se case com ela, prometendo performar mais sua feminilidade, que para ela significa deixar o cabelo crescer).

Baldwin usa com brilhantismo seus personagens como vias para exorcizar seus próprios demônios e trabalhar seus próprios traumas. Toda a discussão acerca da sexualidade e de raça — nas entrelinhas — existente no livro pode ser entendida como uma denúncia do autor à sua terra natal, que o fez fugir para a França devido ao racismo sofrido desde a década de 20, e principalmente à comunidade afro-americana, que não aceitava sua homossexualidade. Vale lembrar que o livro não foi muito bem recebido dentro da comunidade afro-literária, e uma possível explicação pode ser que seu primeiro romance, Go Tell it On the Mountain, onde todos os personagens eram negros e lidavam com religião, logo, o fato de O Quarto de Giovanni ser (ao menos na superfície) sobre homossexuais brancos fez Baldwin, um homem gay e negro, ser visto com um outsider. Não é por acaso que sua sexualidade, bem como a de Bayard Rustin não eram bem vistas dentro do movimento pelos direitos civis e também por alguns membros dos Panteras Negras. Comportamento que só começou a mudar após o famoso discurso de Huey P. Newton contra a opressão às mulheres e aos gays.

Ainda que raça não seja o foco principal da trama, seria impossível esperar de Baldwin uma história sem o tema. Basta lembrar que David abandona Joey após a noite de sexo, nunca mais reatando a amizade com o rapaz. Esse abandono é o resultado da vergonha por ter praticado sexo com outro rapaz, ou por ter praticado sexo de forma passiva com um rapaz negro? Joey significa não apenas a perda da heterossexualidade de David — e sua imersão no, ou descobrimento do homoerotismo —, ou a perda da pureza de sua raça? Para David, adentrar numa relação com outro homem significa estar intrinsecamente enraizado, preso e acorrentado no armário, e Baldwin simboliza isso através de uma passagem belíssima em que ao acordar ao lado de Joey, David nota que a coberta que eles usaram estava enrolada nos pés dos dois, os deixando presos a um desejo proibido que só poderia ser vivido escondido do mundo, dentro de um quarto escuro onde os corpos podem se tocar sem que os olhos constatem a vergonha na face alheia.

Podemos entender O Quarto de Giovanni como uma metáfora para quatro situações: primeiramente como romance, ele é um filho bastardo de Baldwin — que por sua vez também foi um filho bastardo —, visto que de toda a sua obra, é o único sobre pessoas brancas; em segundo lugar, o quarto onde eles vivem simboliza o estado da saúde mental de Giovanni; em terceiro, o quarto também funciona como o armário em que David está, pois lá ele se sente seguro, mas ao mesmo tempo infeliz, pois imagina que fora dali ele não pode ser quem ele é; e finalmente, simbolizando o modo como a relação entre homens é vista pela sociedade: Baldwin descreve o quarto como um local sujo, fétido e propício à infecção e doenças.

O Quarto de Giovanni demonstra o precoce brilhantismo de Baldwin aos 31 anos, e apenas em seu segundo romance — que foi recusado pelo editor de seu livro anterior por se tratar de uma história polêmica que segundo ele, destruiria a carreira do autor dentro da comunidade afro-americana — consegue abordar e retirar temas que ainda estavam prestes a serem descobertos, como gênero e performance, bissexualidade e homossexualidade de dentro dos círculos artísticos e intelectuais e apresentá-los para o grande publico da década de 50 com humanidade e complexidade ao mesmo em que estuda a autopercepção da mulher heterossexual dentro de relacionamentos com homens de sexualidade fluida.

Baldwin escreve uma representação honesta da pressão que homens bissexuais e pansexuais podem sofrer simultaneamente pela comunidade gay e por parte dos heterossexuais, pois somos constantemente obrigados a “escolher um lado” — isso quando não temos nossa sexualidade apagada ao sermos reduzidos a homens indecisos acerca de nossos desejos. Após o lançamento, o romance foi recebido com desdém pelos conservadores dentro do circuito afro-literário, mas não obstante, foi abraçado pelos intelectuais brancos e acabou tornando-se um clássico, sendo considerado um marco na literatura LGBTQIA. Em última análise, a lição derradeira que aprendemos após a leitura de O Quarto de Giovanni é que uma vida de adequação à cisheteronormatividade pode e irá ceifar qualquer chance de uma pessoa ser amada e de obter amor próprio, de se sentir orgulhosa de seu corpo e seus desejos.


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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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