O apagamento sistêmico do romance “Água funda”, de Ruth Guimarães

Água funda (Editora 34) é, sem dúvida alguma, um dos romances mais importantes da literatura brasileira. Contudo, sabe-se lá por qual motivo, ainda não caiu nas graças nem do público nem da crítica. Sobretudo, quando pensamos que tanto no que tange a economia da obra — como veremos adiante — quanto em tudo aquilo que à escapa e à circunda, Água funda é uma preciosidade. A começar por sua autora, Ruth Guimarães, figura ímpar da história de nosso país. 

Nascida em 13 de junho de 1920 em Cachoeira Paulista, São Paulo, no Vale do Paraíba, Dona Ruth Guimarães foi uma intelectual incomparável. Sua história nas letras brasileiras começou muito cedo, com ela publicando poemas em jornais de sua cidade quando ainda tinha dez anos, depois passando por um período como datilógrafa e revisora antes de cursar Letras Clássicas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo em 1947. Na capital paulista, para onde foi aos dezessete anos após se tornar órfã, conheceu Mário de Andrade, que se tornou um mestre, a iniciando nos estudos do folclore, orientando-a, inclusive, em um de seus trabalhos de mais destaque, Os filhos do medo (com edição mais recente pela Editora Unipalmares), e frequentou o Grupo da Baruel, um círculo literário importante que se reunia na Drogaria Baruel. Além de escritora, Dona Ruth também foi tradutora, jornalista e pesquisadora. 

Publicado originalmente em 1946 pela Editora Livraria do Globo, Água funda foi bem recebido por público e crítica, tendo nomes como Antonio Candido, Álvaro Lins e Brito Broca escrevendo sobre o romance. E a sua repercussão inicial fez com que Dona Ruth se tornasse a primeira autora negra a ter projeção nacional. E esse fato se torna mais impressionante, mas nada surpreendente, quando lembramos que o seu romance fora apenas o segundo a ser publicado por uma mulher negra no Brasil, sendo o primeiro após a abolição. O primeiro, como muito bem sabemos, foi Úrsula (1859), de Maria Firmina dos Reis. Um intervalo assustador de oitenta e sete anos. Com isso, era de se esperar que seu nome fosse muito bem assentado na cultura brasileira, mas a triste realidade é que, como tantos outros nomes negros e não brancos, tanto autora quanto a sua obra caíram em esquecimento. 

Não darei meia-volta aqui: sabemos que o racismo, tão bem enraizado, estruturado e organizado na sociedade brasileira, é um dos grandes motivos para que Dona Ruth e sua obra tenham sido por tanto tempo invisibilizadas. Não fosse o esforço incansável da família da autora, por meio do imprescindível Instituto Ruth Guimarães, e nomes como Fernanda Miranda — vide o seu incontornável Silêncios prescritos: estudo de romances de autoras negras brasileiras (1859 – 2006) (Editora Malê) —, não sei se saberíamos da autora hoje. Eu mesmo só fui ouvir falar da autora muito tarde. Não lembro o contexto, mas soube dela por meio de Conceição Evaristo, pouco antes da publicação da terceira edição (de 2018) de Água funda — a segunda edição saiu em 2003, pela editora Autêntica. Fato que por si só é mais um absurdo: como que um trabalho dessa magnitude tem apenas três edições — quatro, se contarmos a bela e mais recente edição feita pela Tag em parceria com a Editora 34 — e com tamanho espaçamento entre elas desde sua primeira publicação, no meio do século passado?

Tal apagamento ainda tem em si outros episódios inacreditáveis. O primeiro desses episódios que quero mencionar aqui tem a ver com o centenário da autora. Tirando algumas lembranças tímidas como as da BBC, da Folha de São Paulo (para onde Dona Ruth escreveu) e do Nexo Jornal, muito pouco se falou a respeito. No mesmo ano também comemoramos o centenário de outra de nossas maiores escritoras, a Clarice Lispector, que recebeu todos os louvores que merece, mas que comparando com o tratamento que Dona Ruth recebeu, escancaram uma disparidade abissal que deveria ser, no mínimo, encarada como vergonha. Ambas mereciam tanto, não só uma. O segundo de tais episódios que quero mencionar é a ausência de Dona Ruth na Enciclopédia Negra (Companhia das Letras), organizada por Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Moritz Schwarcz. De fato, um trabalho importantíssimo, mas que mais uma vez invisibiliza a autora, o que eu considero um erro crasso, visto a ausência de autoras negras na nossa história literária — mais uma vez, lembremos do trabalho importante de Miranda. Não há nada que explique isso.

O apagamento de Água funda e, consequentemente, Dona Ruth, também tem seus desdobramentos na academia. Pouquíssimo foi produzido em torno do romance e da obra da autora. Até a última vez que conferi, só há duas pesquisas a respeito do romance em andamento: a minha, que recentemente deu origem a minha monografia, Na correnteza: mergulhos possíveis em Água funda, de Ruth Guimarães (2023), e a de Júlia Batista, que trabalha com o romance em seu mestrado na FFLCH da USP, dando origem à dissertação O narrador em Água Funda: figurações de uma perspectiva caipira (2025). Desconheço outras pesquisas e torço para que tenham mais. Antes disso, até a minha última investigação, reitero, além da tese de Fernanda Miranda, apenas mais três trabalhos de pós-graduação e uma tese de pós-doutoramento foram encontrados (dois desses, mencionados por Miranda em sua pesquisa, inclusive). Estarrecedor. 

(Contudo, as coisas aparentam estar mudando, mesmo que a passos lentos. Além da recente edição de Água funda pela Tag — indicação do Emicida —, fato que fará com que muitos leitores brasileiros tenham seu primeiro contato com a autora, nomes como Juliana Borges e Nathália Zuccala também estão (re)descobrindo a magia de Dona Ruth. Sem contar as novas edições de outros trabalhos da autora — e até mesmo livros inéditos —, ainda que por editoras pequenas e com baixa circulação, que começaram a surgir. Isso sem mencionar a importante biografia, ainda que um tanto pessoal, escrita pelos filhos Júnia Botelho e Joaquim Maria Botelho, História da casa velha (2022, Editora Reformatório). Um curta-metragem também está sendo produzido pela Cia Cássio B. Que Água funda (e os outros livros de Dona Ruth) se torne água corrente — título que a própria autora aventou para o seu romance.)

Edição especial pela Tag em parceria com a Editora 34. Crédito: Arman Neto

Ambientado em uma comunidade rural na Serra da Mantiqueira, Água funda é um romance que nos guia de maneira espiralar e confluente por tempos distintos, mas que ocorrem em um mesmo espaço. Por meio das histórias que circundam as personagens centrais, Joca e Sinhá Carolina, somos apresentados aos diversos causos que tornam Nossa Senhora dos Olhos D’Água tão vivaz. 

Fernanda Miranda resume a superfície de Água funda de forma exímia. A pesquisadora diz:

a narrativa é dividida em duas fases. Na primeira, a fazenda é um núcleo escravista típico, com senzala, engenho, casa grande, escravos, senhores e crueldades. É propriedade de Sinhá Carolina, cujas ações protagonizam essa parte da história. Depois que a Sinhá vende a fazenda para a “Companhia”, começa a segunda parte da narrativa, que corresponde ao tempo presente na narração. Agora o espaço onde existia Olhos D’Água se tornara uma usina para beneficiamento de cana de açúcar, e o protagonista da narrativa passa a ser Joca, empregado da usina. Assim, Carolina e Joca vivem em tempos diferentes no mesmo (outro) espaço (Miranda, 2019, p. 133).

Entretanto, como é de se esperar, tal síntese só roça parte do que é o romance de Dona Ruth. Água funda é muito mais. E em todos os seus aspectos formais. Ou seja, no que tange tanto a narrativa quanto o seu trabalho de linguagem.

Na primeira fase de Água funda, como apontado por Miranda, o cenário é o fazendão de Olhos D’Água, propriedade de Sinhá Carolina, e espaço-tempo no qual os ecos da escravidão são gritantes. E é por meio da história da personagem — que em um primeiro momento goza de seus privilégios, mas logo cai em desgraça — que adentramos os meandros da narrativa, conhecendo as cores do romance. A partir dos eventos que se dão, somos postos diante da realidade social e cultural que circundam o período ali retratado, no qual uma mulher de trinta e tantos anos já era percebida como velha (em determinado momento, “o povo” achava que Sinhá Carolina tinha idade suficiente para ser mãe de um pretendente que estava na casa dos vinte) e a escravidão, uma realidade (há indício de que no tempo narrado, tempo esse que difere do tempo da narração, tal violência ainda se faz presente. À certa altura, um capataz, a respeito de uma escravizada, pergunta a Sinhá Carolina: “não é melhor comprar o marido dela também, Sinhá?” Pois bem).

Na segunda fase de Água funda, fase essa em que a voz narrativa anuncia que “o resto da história é de agora”, a chegada da Companhia transforma a vida de muitos que vivem na região. Primeiro porque ela se localiza onde um dia foi a Fazenda Nossa Senhora de Olhos D’Água — a fazenda que outrora fora de Sinhá Carolina, não deixando de ser uma fazenda, mas mudando a sua função social — e depois por promover uma outra experiência aos trabalhadores do lugar. É a partir desse momento da narrativa que temos um maior contato com Joca, a outra personagem central do romance, cuja vida é agora a que nos guia pelos causos que ocorrem na história.

Ruth Guimarães e o filho Joaquim Maria Botelho, em 2013. Crédito: Olavo Guimarães

Água funda é um romance no qual a fronteira entre o realismo e o fantástico é muito tênue, e o medo e o fatalismo se fazem presentes. O primeiro desses signos se dá por meio da praga e da Mãe de Ouro — entidade cuja ligação com Joca é elemento importante na história. A praga fora lançada sobre a comunidade por um homem que aliciava os moradores da região a ir trabalhar no sertão, o que não passava de um trabalho análogo à escravidão, descoberto pelo retorno de outro morador de Olhos D’Água, a personagem Mané Pão Doce, também aliciado, e que se encontrava “num estado que dava dó. Coitado! Só pele e osso. Só, não. Pele, osso e pereba. Tinha pereba até na cabeça”. Joca por pouco se livrou de tal destino. A revolta de todos foi imensa, e não só surraram como humilharam aquele homem. E é a partir disso que a sorte de Olhos D’Água muda. “Foi a praga. Pois ia tudo correndo tão bem”, diz o narrador-testemunha. E continua: “Que descem uma sova naquele desgraçado, vá. Que dessem um tiro, já digo. Ele veio aqui perturbar, tinha que levar o dele. Mas jogar o homem no banheiro de gado, como boi bichento!… Não. Isso não é coisa que se faça para um cristão”. E como efeito, diversos fins trágicos e violentos se dão em Água funda

Mas se no campo da narrativa Água funda é riquíssimo, o seu trabalho de linguagem não fica para trás — sendo talvez até maior. Dona Ruth, como certa feita disse ser sua intenção, tentou imprimir com fidelidade e apuro linguístico a maneira de pensar e ser do povo, respeitando tanto o pensamento quanto a linguagem caipira, buscando a sua maneira de contar histórias e pôr a linguagem (2014). É o que a autora diz ser escrever com profundeza, mas sem deixar de ser simples e clara, para que pudesse ser entendida por todos (1996). Acredito ter conseguido. Não só eu, como Antonio Candido (2018), que ao escrever a respeito do romance, disse que “quanto à linguagem, a construção talvez seja ainda mais elaborada, porque Ruth Guimarães consegue produzir um discurso de tonalidade espontânea, mas de fato, carregado de estilizações bem conduzidas” Para ele, Água funda é “caracterizado pela elaboração arte-ficial de uma linguagem que obedece à disciplina da gramática e, ao mesmo tempo, parece sair da boca do povo rústico. Isso se chama literatura e consiste em inventar uma linguagem suspensa entre o popular e o erudito, fazendo do livro obra que tem o timbre das realizações cheias de personalidade”. E talvez o melhor exemplo disso esteja no excelente narrador anônimo que Dona Ruth compôs para o seu romance, construído tão bem que no “entre lugar entre a primeira e a terceira pessoa, e entre a intrusão e a testemunha”, como escrevi em minha monografia, é peça fundamental e imprescindível para o romance, pois é por meio da voz narrativa que a linguagem suspensa entre o popular e o erudito de Dona Ruth ganha melhor forma. 

Água funda é um romance frutífero. Só possível pela singularidade e excelência de sua autora. Alguém que acreditava que por ser parte do povo a respeito do qual escrevia é que fora capaz de escrever tão bem a respeito dele. Dona Ruth Guimarães unia o diferente — tanto em sua vida como em seu texto — e fazia dele um novo. E com isso, nessa história — que guarda em si tantas histórias — que vai dos tempos da escravatura à modernidade, somos expostos a um ótimo retrato do Brasil e sua gente. Um país com suas belezas, contradições e mistérios. Um lugar feito de seu povo, tão bem representado no romance pelas personagens únicas às quais Dona Ruth deu vida — para além de Joca e Sinhá Carolina, Água funda é morada de várias personagens marcantes, em especial Curiango, companheira de Joca em que “tudo no diacho dessa mulher nos faz lembrar de correnteza. Tem o andar bamboleado e macio de veio d’água. Tem uma risada de passarinho nascido perto de cachoeira. E o lustro daqueles olhos pretos é ver lustro de jabuticaba bem madura, molhada de chuva.” E tal descrição, acredito eu, também pode ser usada para pensarmos o trabalho de linguagem de Dona Ruth. 

No mais, Água funda é um romance que guarda em si muitas possibilidades, permitindo as mais diversas chaves de leitura. Há temas, problemas e outras questões aos quais podemos nos voltar e não (ou mal) tratei aqui — como a  loucura, as dinâmicas raciais e as relações de poder, apenas para não dizer que não mencionei mais nada. Mesmo que não fosse a sua intenção, e não sabemos se fora ou não, Dona Ruth faz uma leitura sociocultural muito rica do Brasil a respeito do qual escolheu escrever. Apenas começamos a navegar por essas águas, há ainda muito o que desbravar. 

 

Referências bibliográficas

CANDIDO, Antonio. “Prefácio”. In: GUIMARÃES, Ruth. Água funda. São Paulo: Editora 34, 2018.
GUIMARÃES, Ruth. Água funda. São Paulo: Editora 34, 2018.
GUIMARÃES, Ruth. Contos de cidadezinha. Lorena: Centro Cultural Teresa D’Ávila, 1996.
GUIMARÃES, Ruth. Cartas a Mário de Andrade. Ângulo, n° 137, abr./jun., 2014, Lorena. p. 50-53.
MIRANDA, Fernanda R. Silêncios prescritos: estudos de romances de autoras negras brasileiras (1859 – 2006). Rio de Janeiro: Malê, 2019.

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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