O luto é uma experiência muito particular. Por mais que as dores da partida sejam compartilhadas, cada indivíduo lida a seu modo com as feridas causadas por essa ruptura que é a morte. Há quem foque todas as suas energias no trabalho para que a cabeça fique longe, sem precisar enfrentar o vazio que se forma; há quem não consiga parar de rememorar as lembranças de quem se foi e assim prefere; Pedro, o narrador de O avesso da pele (Companhia das Letras), terceiro romance de Jeferson Tenório, procura reavivar a história de sua família. Em especial, a história de seu pai, pessoa que ele acabara de perder.
Narrado majoritariamente em segunda pessoa, em O avesso da pele acompanhamos parte da vida de Martha e Henrique, pais do narrador. Henrique nasceu no Rio de Janeiro, mas aos doze anos se mudou com a mãe e as irmãs para a cidade de Porto Alegre. Isso se deu porque pouco após o menino nascer, eles se viram abandonados pelo pai de Henrique, fazendo com que a mãe precisasse se virar. Após tantos tropeços diante da vida, foram parar na casa da avó de Henrique, um ambiente hostil e violento que ajudou a lhe proporcionar uma vida difícil e ainda lhe presenteou com uma úlcera. Mais tarde, formou-se em Letras e passou a viver as agruras do que é ser professor no Brasil. Homem negro vivendo em uma cidade racista, Henrique cresceu sendo marcado e moldado por essa violência. Martha, assim como Henrique, não teve uma vida fácil. Nascida em uma família bastante pobre, logo foi adotada por uma mulher branca, tendo a sua vida transformada a partir de então. Casou-se cedo, viu sua vida conjugal precoce ruir e por necessidade, voltou para Porto Alegre, cidade na qual ela não só se sentia uma estrangeira, mas também não sentia-se bem-vinda. Martha e Henrique se conhecem na universidade, decidem dividir a vida, mas vivem uma relação complexa e delicada, cheia de camadas e a ponto de implodir a qualquer momento.
Tenório escolhe contar essa história de forma não linear. Indo e voltando a diversos momentos da vida dessa família, o autor consegue nos proporcionar uma experiência bem fidedigna da de alguém que mergulha em suas lembranças conforme vai buscando outras a fim de costurá-las com a intenção de dar um corpo ao todo. Os causos vão se apresentando e, de certa forma, ditando a narrativa. E ele o faz de maneira tão fluida – e com poucos parágrafos – que o seguimos sem resistência. Aos poucos vamos conhecendo melhor esses personagens e tudo aquilo que os atravessaram em diversos momentos de suas trajetórias, o que nos ajuda a compreender melhor quem são e o porquê de suas escolhas.
Em O avesso da pele, Tenório também nos expõem às diversas formas com as quais o racismo pode enfiar as suas garras em um corpo negro. Mas ele o faz sem didatismo, sem querer provar a todo custo que, por ele mesmo ser um homem negro, entende sim o que é ser discriminado em função de quem é. Pelo contrário. No romance, o que vemos é uma tentativa de introduzir a questão racial da forma mais orgânica possível, evitando qualquer panfletagem não proposital. E mesmo nos trechos em que há o que parece ser uma preocupação de explicar o que se está acontecendo para possíveis leitores brancos, há um cuidado para que isso seja feito de maneira que não soe pedante para quem não precisa daquela informação. Isso nos mostra o escritor habilidoso e preocupado que Tenório é.
Outra coisa que o autor faz muito bem é desmontar estereótipos. Seus personagens fogem daquilo que é costumeiramente esperado das pessoas negras. Sobretudo as da ficção. E o melhor exemplo disso é Martha, mulher negra pouco ou nada interessada em questões raciais quando ela própria não escapa dele. Pessoas negras são múltiplas, com interesses próprios e vidas singulares, e Tenório deixa isso muito desenhado em seu livro.
Indo além, também vale mencionar que O avesso da pele é um ótimo registro do que é ser uma pessoa negra no sul do país. Por mais que o racismo possa se apresentar com outras caras, ele ainda existe, ainda é cruel, ainda é violento. Mas no romance, também fica explícito que algumas coisas não mudam: o corpo negro continua sendo um alvo, seja da polícia, do Estado ou dos cidadãos de bem. É sempre ele que será empurrado para as margens econômicas ou sociais. Para quem irão apontar o dedo. E conhecemos um pouco dessa realidade sulista por meio de toda sorte de sofrimentos que Henrique e Martha passam ao longo da narrativa. São momentos de despertar, de negação, de resignação e revolta. Ser um corpo negro é difícil em qualquer parte do mundo, mas a sua existência também está sujeita a particularidades e contextos dos mais variados.
Escritor arguto, Jeferson Tenório faz de O avesso da pele um romance pungente, que se destaca na literatura contemporânea brasileira. A forma sensível com a qual ele trata seus personagens faz com que não demore muito para que sejamos seduzidos pela sua trama. E a escolha da voz narrativa do seu romance é certeira, pois nos faz sentir muito próximos daquela família, como se estivéssemos de luto junto a Pedro, enquanto o rapaz resgata e recria a memória de seu pai. E por não se apoiar apenas no ótimo argumento de sua obra, Tenório confere mais força ao romance, pois a arquitetura que o autor projeta e desenvolve para a história é sob medida para ela, tornando O avesso da pele um romance exemplar pela forma como trata as complexidades das relações familiares e as subjetividades do que é ser negro em um país que tem o racismo como força basilar.
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