Em Agora veja então, de Jamaica Kincaid, — publicado no Brasil pela editora Alfaguara em 2021 — acompanharemos uma família formada pelo casal sr. e sra. Sweet e seus dois filhos adolescentes, Perséfone e Héracles. O sr. Sweet é um compositor de música clássica, branco, frustrado pela vida no interior, e a sra. Sweet é uma escritora negra que buscava o bucolismo e a tranquilidade de uma cidade pequena para criar os filhos, mas, principalmente, para evitar ser deportada, já que vivia ilegalmente nos EUA. Como resultado, eles acabam indo viver em uma cidadezinha da Nova Inglaterra nos anos 90, mais precisamente na casa onde viveu Shirley Jackson, autora norte-americana conhecida mundialmente por seus livros de terror, principalmente A assombração da casa da colina, de 1959.
Escrito em um fluxo de consciência repleto de lirismo através do ponto de vista de cada membro da família, o livro mais parece um longo poema de terror psicológico maternal, paternal e conjugal, já que cada um deles relembra e tenta ajustar as suas vidas quando descobrem que o sr. Sweet abandonará a esposa após se apaixonar por uma mulher mais nova e, segundo ele, mais culta, o transformando e o completando intelectualmente. Pior: é alarmante percebermos que ainda que existam lampejos de amor, cada um dos personagens parece odiar genuinamente uns aos outros com todas as suas forças, já que constantemente iremos testemunhar Héracles desejando a morte da mãe e do pai. Na mesma proporção, o sr. Sweet irá desejar a morte do filho, e uma morte ainda pior para a esposa, a sra. Sweet, pois em sua concepção ela significa a perda de sua liberdade enquanto um compositor intelectual cuja vida precisa ser movida por conversas profundas sobre arte, música clássica e literatura na cidade grande.
É interessante percebermos a discrepância nas noções de liberdade de ambos: o sr. Sweet, que é branco de olhos azuis, quer ser livre para flertar com suas alunas e compor; em contrapartida, para a sra. Sweet, sua liberdade é intrínseca à sua história enquanto uma mulher negra e imigrante vivendo de modo ilegal nos Estados Unidos antes de se casar. É doloroso perceber que ela vive uma espécie de paradoxo social, racial, matrimonial e materno, visto que ao se casar ela ganha a liberdade enquanto cidadã norte-americana naquele país, mas perde a liberdade artística ao tornar-se propriedade de um homem branco que ao se casar com ela, a salvou de ser deportada; e em seguida ao tornar-se dona de casa e mãe de dois filhos.
Um aspecto interessante que deixa a narrativa ainda mais rica e repleta de metalinguagem é o fato de Shirley Jackson também ter sofrido com os casos de infidelidade de seu marido, que manteve vários casos amorosos com suas alunas. Logo, é como se as infidelidades do marido de Jackson funcionassem como uma espécie de fantasma que perambula a casa dos Sweet, se reencarnando em sua relação. Saber desses detalhes faz com que uma espécie de terror sobrenatural ou psicológico paire continuamente não apenas sobre os personagens, mas também em nós, leitores, uma vez que é impossível não ser afetado pelo modo escolhido por Jamaica Kincaid para escrever Agora veja então. Por outro lado, provavelmente apenas o leitor ciente da bagagem psicológica que o nome Shirley Jackson carrega no contexto literário poderá perceber a riqueza de informações que se encontram sob o texto, ou ter uma ideia do que poderá ou não acontecer com aquela família, já que os personagens nunca explicam quem foi Shirley Jackson.
Paralelamente, e até mesmo de forma anacrônica e bem-humorada, existem dezenas de referências divertidas à cultura pop, sejam elas sobre videogames, Jay-Z, a um período específico da NBA, ao Crossdressing (sim, estou falando de Dennis Rodman), à atriz trans de origem latina Holly Woodlawn ou ao cinema clássico norte-americano em uma insistente referência ao Capitão Bligh, personagem de “O grande Motim”, filme de 1935 protagonizado por Charles Laughton e Clark Gable, de “…E o vento levou”. Infelizmente, no entanto, a referência ao cinema não aparece de forma positiva e prazerosa, mas sim de forma deselegante em várias demonstrações da intelectualidade vazia do sr. Sweet, já que ele usa o personagem (que é gordo, feio e desajeitado) para provocar sua esposa com relação ao aumento de seu peso após duas gestações, ou de forma ainda mais dolorosa, quando a própria sra. Sweet absorve esse sentimento e começa a odiar sua imagem, chegando inclusive a se comparar à Elsa Lanchester, mais precisamente à sua personagem em “A noiva de Frankenstein”, continuação de “Frankenstein” lançada em 1935, cujos cabelos eram estranhamente emaranhados para cima, com evidentes mechas de fios brancos. E aqui Jamaica Kincaid merece aplausos pela deliciosa ironia de usar como exemplo duas pessoas que viveram um feliz casamento de 33 anos na vida real (Charles Laughton e Elsa Lanchester) em uma história envolvendo duas pessoas que se odeiam. Isso, sem contar a ironia maior, que é dar o sobrenome de Sweet (doce, amável) a uma família de pessoas desprezíveis que se odeiam.
Por falar no detestável sr. Sweet, acho importante avisar que esse personagem deveria vir com aviso de gatilho estampado na testa, já que trata-se de um sujeito racista, machista, gordofóbico e arrogante que é a personificação do homem hétero, branco e incel de meia-idade, que cresceu acreditando que o mundo existe apenas para satisfazer suas vontades, e que quando essa profecia não se concretiza ele se acha no direito de transformar a vida de todos a sua volta em um inferno por não ser bem-sucedido em sua carreira. É sintomático, aliás, como a ação do sujeito de abandonar a esposa não gera tristeza ou revolta nos filhos adolescentes, pelo contrário, eles começam a considerar a mãe como uma falha, já que de acordo com suas percepções, ela passava todo o seu tempo escrevendo em seu escritório, e por consequência, não conseguiu segurar o marido — refletindo um comportamento muito conhecido da sociedade. É impossível não traçar paralelos com a famosa frase de Virginia Woolf, já que mesmo tendo um teto todo seu para criar ficção, ela ainda sim era considerada um fracasso enquanto mulher, mãe e esposa. Curiosamente, o fato de o sr. Sweet também passar o tempo todo afastado da família em seu estúdio não é uma questão para os filhos. Dois pesos e duas medidas.
Já para os fãs da mitologia grega é um prazer a parte se deparar com a personagem da filha, a bela Perséfone, como ela é constantemente chamada por todos no romance, e notar como a sua relação com o sr. Sweet imita a vida da própria Perséfone, rainha do submundo e filha de Zeus com sua própria irmã, Deméter. Explico: na mitologia grega, Perséfone foi sequestrada por Hades, seu próprio tio, passando a viver no underground, no submundo. É com certeza uma história quase metalinguística, já que o leitor ciente de todos esses detalhes literários, históricos e extra-narrativos reconhece o “fator incestuoso” do nascimento de Perséfone, a Rainha, ecoando por toda a narrativa de Agora veja então, principalmente no modo como o sr. Sweet tenta manter sua filha longe do mundo real, a guardando em seu estúdio (seu próprio submundo particular). Já a sra. Sweet muitas vezes parece ser uma versão moderna de Cronos, o rei supremo que comia todos os seus filhos gerados com Réia, sua esposa-irmã — e aqui percebam novamente o tema incesto surgindo na narrativa de forma orgânica, quase que escondida, demonstrando a perspicácia de Jamaica Kincaid ao construir aquele universo.
Em última análise, Agora Veja Então é um livro difícil — seja no estilo de fluxo de consciência escolhido por Kincaid, seja nos temas abordados, ou seja nas atitudes dos personagens — que não foi escrito para leitores passivos em busca de uma leitura para passar o dia na praia, as populares “beach reads for summer”, já que Jamaica Kincaid não está interessada em mastigar para seus fãs uma história de narrativa simples — com começo, meio e fim — sobre um casal interracial que se odeia. Definitivamente aquele universo exige muito de nós, nos deixando exaustos a cada virar de páginas, mas terminada a leitura, é inegável a importância literária da obra.