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Reflexões sobre masculinidade, feminilidade e transexualidade em ‘Orlando’, de Virginia Woolf

Orlando: Uma biografia (publicado pela Companhia das Letras com tradução Jorio Dauster), trata-se de uma “falsa” biografia de Virginia Woolf escrita em 1928 de forma bem humorada e com tons de sátira. O protagonista, Orlando, surge aos 16 anos com bochechas rosadas e vive assim até os 37, ou seja, durante cerca de três séculos. Mas Orlando não será só Orlando, um nobre com 150 empregados cuidando de seu castelo assombrado pelos fantasmas de seus antepassados que permaneciam em túmulos em um andar obscuro do local, Orlando sequer era somente homem: ele era Vita Sackville-West, grande amor de Virginia. Orlando era mulher, portanto? Definitivamente sim. Woolf escreve passagens singelas e delicadas, como por exemplo, ao comparar o jovem Orlando, então com 16 anos, e enclausurado em seu castelo com uma borboleta, indicando assim que nosso protagonista enquanto homem ainda é somente uma lagartinha, que mesmo na tenra idade de 16 anos, já vive em um casulo de masculinidade tóxica inerente.

Belo, andrógino e ostentando um par de belíssimas pernas desde a adolescência, Orlando viveu por 30 anos como um ser masculino, gozando de todos os privilégios que lhe são deliberadamente concebidos graças ao que tinha no meio das pernas. O impacto de séculos de masculinidade em sua personalidade é o seu principal e o imediato obstáculo, tanto interno quanto externo, visto que com sua vida como mulher chega não só o safismo, mas também um preço alto a se pagar por causa do patriarcado, da heterossexualidade compulsória, do papel submisso que a protagonista agora precisa enfrentar, e até mesmo os olhares de homens sedentos causados pelos 5 centímetros dos tornozelos que agora estão desprotegidos pelo uso de uma saia. Ela passa a sentir vergonha de todas as suas contribuições para a construção do cisheteropatriarcado quando fazia parte do sexo oposto.

Como homem, Orlando se apaixonou perdidamente algumas vezes, mas teve seu coração dilacerado por Russa Princess Marousha Staniloska Dagmar Natasha Iliana Romanovich (vulgo Sasha). Toda a construção do capítulo, desde o primeiro encontro do casal, incluindo o fato de que Sasha era, em seus próprios termos, uma mulher andrógina (é pertinente destacar que Orlando sentiu-se atraído sexualmente por ela de uma forma intensa antes mesmo de saber seu gênero de fato), é feita de forma primorosa pela autora, dado que testemunhamos o nascimento de uma paixão fadada ao fracasso devido ao modo possessivo e objetificador de Orlando, que contrastava com o espírito livre de Sasha.

O humor, a androginia e o constante uso do crossdressing remete aos textos clássicos de comédia de Shakespeare. O bardo, considerado pela autora um exemplo primoroso de mente andrógina masculino-feminina, é citado várias vezes na primeira metade do livro, visto que o protagonista, enquanto homem, não só vivia em Londres na mesma época que Shakespeare, como também chegou a assistir uma apresentação de Otelo, passando, após a experiência, ter vários devaneios acerca da morte.

Como a autora deixa evidente, Orlando era um aspirante a poeta, e como toda versão romantizada da figura do poeta melancólico, ele era, em seu núcleo mais profundo, um solitário nato. Seu passatempo preferido era passar horas deitado no tronco de uma velha árvore a escutar os pássaros e a dormir. Essas sonecas duram sempre 7 dias e são o ritual de troca dos séculos, nos excitando a cada vez que o protagonista está prestes a dormir, imaginando que um século novo estará sendo apresentado na próxima página. Já no final do livro, quando após uma de suas sonecas, ele acorda no século 20, mais precisamente, na década de 20, o romance passa a funcionar não apenas como um espelho, refletindo os dias atuais vividos por Virginia e sua amante Vita em tempo real, como também como um sonho sáfico e utópico demonstrando tudo que elas poderiam ter vivido juntas caso a lesbofobia e a heterossexualidade compulsória não existissem e não prendessem mulheres em quartos não só delas.

Virginia usa a passagem do anos de forma soberba, uma vez que os séculos vividos pelas duas versões de Orlando podem ser entendidos como um medidor de sua desconstrução e liberação político-sexual-social, visto que a sociedade patriarcal, hipócrita e conservadora inglesa precisou de 300 anos para alcançar o empoderamento da protagonista que encerra a história aos 37 anos. O modo magistral que Orlando renasce como mulher após um longo sono é escrito de forma emblemática pois pode (deve?) funcionar como uma declaração de Virgínia ao corpo de Vita na primeira noite do casal:

“Espreguiçou-se. Levantou-se. Ficou de pé […] sem roupa nenhuma […] e não temos escolha senão confessar – era mulher. O som das trombetas foi se desvanecendo enquanto Orlando permanecia de pé, nua em pelo. Nenhum ser humano, desde que o mundo é mundo, foi tão belo.” (p. 142)

A chegada do século 19, além de intensificar a percepção de Orlando acerca da mudança não somente em seu interior, seu papel na sociedade enquanto mulher, faz com que ela precise se fazer de burra para não machucar o precioso ego masculino, e assim se encaixar nos moldes relegados às mulheres antes do movimento sufragista. Um aspecto interessante do romance, quando adentramos no início do século 20, é perceber a dificuldade de Orlando em assimilar a mudança na arquitetura londrina, a invenção de novas tecnologias, como carros, motos, aviões, trens, ou se adaptar a moda feminina e as dietas. Em certo momento, após passar mais um século longe de seu castelo, Orlando, ao regressar, requisita aos seus criados uma carruagem de seis cavalos para uma viagem à Londres, imediatamente sendo avisado que pode simplesmente pegar o trem das cinco. Ela usa essas constantes viagens para performar toda a feminilidade esperada por ela durante o dia, apenas para, no fim da noite, vestir roupas consideradas masculinas e perambular de modo andrógino na noite londrina em busca de aventuras, já que “[…] Orlando não tinha a menor dificuldade em desempenhar os diferentes papéis, pois mudava de sexo com mais naturalidade do que podem conceber aqueles que usaram um único tipo de roupa”, e mais adiante, na mesma página, acerca de sua relação com a moda: “A probidade dos calções foi trocada pela sedução das saias, e ela usufruiu igualmente o amor dos dois sexos.” (p. 203)

Por mais empoderado que este livro seja, o aspecto mais emblemático a meu ver é o fato de que o romance foi (e é) estudado e adorado exaustivamente pela comunidade trans, pois o desabrochar de Orlando pode ser entendido não apenas como uma declaração de amor de Virginia Woolf para Vita, mas também como uma analogia sobre as vivências das mulheres trans. Woolf parece ter criado uma obra com um tom quase profético: a biografia dolorosa da própria existência trans e travesti, se pensarmos que a protagonista, na faixa dos 35 anos, e sentindo-se terrivelmente sozinha e desprotegida suspira que “tudo termina em morte” (p. 72) e que no Brasil, a expectativa de vida de mulheres trans e travestis é de 35 anos.

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2 Comentários

  • Responder
    Maria Eduarda Teixeira Alkmim
    20 fevereiro, 2021 em 16:42

    Texto muito bem construído, trouxe reflexões belíssimas.

  • Responder
    Melhores leituras de 2021 + menções honrosas – Impressões de Maria
    23 dezembro, 2021 em 14:36

    […] e triste — ainda que surpreendentemente engraçado —, devidamente embebedado em fontes virginiawoolfianas que tem como tema central a perda — a perda de um amor, a perda da juventude, a perda de […]

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