Rebeldia e inconformidade: uma breve resenha de ‘Homem invisível’, de Ralph Ellison

O Homem invisível é um clássico inconteste da literatura estadunidense. Tendo a sua primeira edição sido publicada pela Random House em 1952, o romance monumental de Ralph Ellison segue sendo relevante e atual mesmo tendo se passado 68 anos de sua publicação original, ganhando nova edição brasileira pela editora José Olympio com tradução de Mauro Gama, texto de orelha de Luiz Maurício Azevedo e ensaio de Gabriel Trigueiro sob o título “Estetismo, raça e política na imaginação literária de Ralph Ellison” como prefácio da obra.

Em Homem invisível temos a história de um homem negro que, “consciente” de sua “invisibilidade”, se afasta das amarras do mundo que conhece e passa a viver no subsolo da cidade de Nova York, mais precisamente numa área fronteiriça do Harlem. Na toca – como chama o lugar onde mora –, este homem que ninguém pode enxergar vive em meio a fios e centenas de lâmpadas enquanto briga com a companhia elétrica da cidade, roubando a energia que a mesma distribui. Entretanto, este é o fim, “embora o fim esteja no princípio e se estenda muito à frente”. Portanto, o que acompanhamos em Homem invisível é a jornada que este sujeito fez até que a sua vida chegasse a este ponto drástico e radical.

Tudo começa quando o protagonista do romance de Ellison ganha uma bolsa para estudar em uma faculdade estadual exclusiva para negros no sul dos Estados Unidos. Lá, o homem, que nunca tem seu nome mencionado durante a história, se esforça para ser perfeito, fazer tudo certo. E é nessa ânsia de não cometer erros que ele mete os pés pelas mãos, tendo a sua vida virada de ponta à cabeça. Por conta de um deslize, pelo qual fora severa e desproporcionalmente responsabilizado, se vê obrigado a migrar para a cidade de Nova York a fim de pôr as coisas no lugar. Porém, ao colocar seus pés na selva de pedra, descobre que o que está vivendo é uma farsa, e resolve controlar seu próprio destino. Coisa que não acontece.

Ao longo do romance, Ellison nos faz percorrer caminhos turbulentos. Seu personagem a todo tempo se vê confrontado pelo racismo em suas diversas facetas. É humilhado, usado, sexualizado e feito alvo (ou seria motivo?) da diversão alheia. Ainda assim não abaixa a cabeça. Tenta a todo custo se mostrar maior, mostrar-se alguém. Contudo, descobre na prática que o mundo não é um lugar justo, e que, independente de cor, credo ou ideologia, qualquer ser humano pode estar preocupado apenas com o próprio umbigo.

Em Homem invisível, Ralph Ellison, por meio do seu grande poder imaginativo, nos apresenta uma trama na qual a inconformidade escorre por cada palavra. Seu personagem é por diversas vezes ingênuo, porém, sempre que acorda, é tomado pela revolta. Também impressiona – mas não surpreende – como muito da época em que o romance se passa se mantém nos dias de hoje. Sobretudo se levarmos em conta quando o mesmo foi escrito. Algumas das questões abordadas por Ellison seguem sendo replicadas em pleno 2020. De líderes negros que só pensam em si e no poder, reproduzindo o modus operandi do opressor a grupos organizados que se dizem progressistas e fazem um discurso libertário e antirracista, mas usam e abusam de corpos negros a bel-prazer, apenas com o intuito de alcançar seus objetivos. Ellison não economiza críticas para todos os lados. A sua preocupação é com a construção de um ser humano complexo, mergulhado em seus dilemas e contradições enquanto busca respostas sobre si ao mesmo tempo que vê as diversas identidades que possuiu ao longo de sua vida ruírem. Alguém que percebe que sempre que olham para ele, os outros enxergam o que querem (um objeto sexual, uma ferramenta de trabalho, o destino de alguém etc.), mas não quem ele realmente é.

Com uma grande preocupação com os aspectos formais que constitui a boa literatura e ecos de virtuosismo que remetem a autores como Dostoiévski (como o próprio Trigueiro aponta em seu ensaio), Ellison faz de seu Homem invisível uma obra grandiosa, que se propõe a provocar, sem se importar em agradar por agradar. Isto fica claro com as escolhas que faz ao longo do romance, com os conflitos que dispõe diante de seu protagonista em desconstrução e, sobretudo, com as feridas que resolve enfiar o dedo com a sua literatura. Comprometido com a arte e a sua estética, sem deixar o pensamento crítico de lado, Ralph Ellison consegue nos deslocar com a força de sua narrativa. Homem invisível é a prova de que a imaginação literária aliada a um texto trabalhado com esmero é impossível de se ignorar. A rebeldia de seu autor é perceptível nas páginas do romance e com vigor, não apenas chamando a atenção, mas a reivindicando.


Você gosta do conteúdo criado pelo Impressões de Maria aqui no blog, no YoutubeInstagram e demais redes? Gostaria de apoiar este trabalho? Você pode fazer suas compras da Amazon usando o link do blog sem pagar nada a mais por isso, ou apoiar o projeto Leituras Decoloniais no Catarse. Obrigada!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

R$ 5.829/mês 72%

Participe do Clube Impressões

Clube de leitura online que tem como proposta ler e suscitar discussões sobre obras de ficção que abordam assuntos como raça, gênero e classe, promovendo o pensamento crítico sobre a realidade de grupos minorizados.