“Nós, os uranistas, somos os sobreviventes de uma tentativa sistemática e política de infanticídio: sobrevivemos à uma tentativa de matar em nós, quando ainda não éramos adultos e não podíamos nos defender, a multiplicidade radical da vida e o desejo de mudar os nomes de todas as coisas.” – Paul Preciado, p. 30
Um apartamento em Urano, publicado pela Zahar em 2020 e traduzido por Eliana Aguiar, é uma viagem dupla: de conhecimento e descobrimento para nós, os leitores, e de reconhecimento e redescobrimento para o autor, Paul B. Preciado. Reunindo crônicas escritas entre 2010 e 2018, Um apartamento em Urano é um livro que precisa — caso você goste de ler enquanto escuta música — ser lido acompanhado de discos proto-punks violentamente enviadados e barulhentos como Kick Out The Jams, do MC5; New York Dolls, disco homônimo de estreia da banda New York Dolls; Paranoia Paradise, da Jayne County, que faz parte da trilha sonora de Jubilee (Derek Jarman), The Stooges, disco homônimo da banda liderada por Iggy Pop, ou, se quisermos manter tudo na mesma língua, podemos incluir Almodóvar y McNamara, duo de pop punk espanhol que era conhecido por suas letras repletas de uma sexualidade proibida, marginalizada e maravilhosamente kitsch.
Optei começar essa resenha relacionando bandas de proto-punk à escrita de Preciado, porque assim como as músicas lançadas por aquelas bandas, as crônicas aqui são barulhentas, corrosivas, repletas de revolta, de sensualidade, de anarquia sexual; são explicitamente contra qualquer ideia arcaica e binária a respeito da sexualidade.
New York Dolls, Almodóvar y Mcnamara e Jayne County and the Eletric Chairs
As crônicas acompanham os acontecimentos políticos, sexuais e tecnológicos ao redor do mundo, ao mesmo tempo em que o autor, que durante muitos anos era lido socialmente como mulher e lésbica, continua seu lento processo de transição hormonal, e busca a mudança de nome. Se cada criação artística pode e deve ser considerada como um retrato político de sua época, as crônicas aqui funcionam como cápsulas de acontecimentos da década passada, e através de um olhar queer e trans, o filósofo escreve de forma elétrica sobre uma variedade de tópicos: filmes como “Azul é a cor mais quente”, e “Ninfomaníaca”; sobre literatura (Federici, Derrida, Beauvoir, Haraway, Foucault e, evidentemente, Judith Butler são citados), terrorismo, bioterrorismo, Julian Assange, guerra, sexo, masturbação, brinquedos sexuais, a sua redescoberta enquanto homem trans, os conservadores heteronoloniais franceses que eram contra o casamento gay, e a baboseira dos que atualmente insistem em acreditar que existe uma ideologia de gênero nas escolas. Nas duras e contundentes palavras do autor, “Os defensores da infância e da família invocam a figura política de uma criança que eles constroem de antemão como heterossexual e de gênero normatizado. Uma criança privada de toda a energia de resistência e da potência de usar livre e coletivamente o seu corpo, seus órgãos e seus fluídos sexuais. Essa infância que eles pretendem proteger está cheia de terror, opressão e morte.” (p. 70).
O magistral prefácio escrito pela então namorada, e agora ex, a autora de Teoria King Kong, Virginie Despentes é particularmente tocante (“é estranho estar na sua casa sem estar na minha” p. 11), bem humorado (“você costumava chamar os bio-homens de peludos” p. 13. Itálico meu), e ao mesmo tempo pertinente, visto que já na primeira página temos uma citação ao político brasileiro Jean Wyllys, que precisou abandonar o país devido à ameaças de morte.
A castração de Urano, por Giorgio Vasari
A explicação de Preciado a respeito da escolha do título por si só já justifica a compra do livro. Ao começar displicentemente falando sobre sonhos, o autor embarca em uma viagem no estilo ficção científica (com toques de Ursula K. Le Guin) em que ele havia sonhado — devido à sua vida de nômade — que possuía um apartamento em cada planeta, e ao descobrir que Urano era um dos planetas mais distantes da terra, Preciado também aprendeu que o planeta foi o primeiro a ser descoberto com a ajuda de um telescópio, e ao pesquisar sobre o astrônomo responsável pela descoberta, acaba sabendo que ele ficou louco na missão de construir o maior telescópio do século 18, e que faleceu aos 84 anos, justamente o tempo necessário para Urano completar uma volta em torno do Sol.
Como se a escolha do título já não fosse o bastante culturalmente significativa, o autor de Testo Junkie continua sua viagem, mas dessa vez com destino à mitologia grega, onde como nós sabemos (ou ficamos sabendo), Urano é um filho que Gaia (a Terra) concebeu sozinha, sem acasalamento ou inseminação. Sabemos também que a mando da mãe, Cronos, castra o pai, Urano, e do pênis castrado nasce Afrodite, a deusa do Amor. Preciado sugere — com uma beleza poética sem tamanho — que o amor vem da desconexão entre os órgãos genitais e o corpo.
“Permitam-me dizer que a homossexualidade e heterossexualidade não existem fora de uma taxonomia binária e hierárquica que busca preservar a dominação do pater-famílias sobre a reprodução da vida”- Paul Preciado, p. 27
Um apartamento em Urano contém dezenas (centenas, arrisco) de termos ligados à tecnologia, o que faz o livro ser paradoxalmente contemporâneo e futurista ao mesmo tempo. Quando compara o mundo atual com a Revolução Industrial, por exemplo, Preciado elabora uma inteligente e apropriada teoria de que a nossa revolução industrial é movimentada graças à engrenagem do corpo e da sexualidade, uma vez ambos que estão em constante mutação devido à engenharia genética, à nanotecnologia e à inteligência artificial. Adiante, ao analisar a questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo na França, bem como a adoção por casais gays em “Quem defende a criança queer?”, ele relembra sua infância em uma família extremamente reacionária, heteropatriarcal e homofóbica com raízes religiosas, sugerindo que as crianças são artefatos biopolíticos que permitem normalizar a heterossexualidade compulsória no adulto. Assunto que está diretamente conectado com o tema de A bala, um dos muitíssimos pontos altos do livro, quando o autor descreve a homossexualidade e a transexualidade como um franco-atirador de alta precisão enquanto relembra sua infância quando ele também havia recebido a certeira bala no peito.
Paul Preciado
A escrita fluída de Preciado é preciosa. Em determinado momento o autor começa a escrever sobre o escritor Jean Genet, apenas para mudar o foco da crônica gradualmente para Édipo e a violência paternal, culminando na luta do feminismo dos anos 70 contra o patriarcado. Já o leitor mais aprofundado no universo Virginiawoolfiano irá sorrir de alegria ao saber que Preciado usou Orlando: Uma biografia como um método peculiar de estudo, entendimento e influência quando estava se descobrindo como homem trans e em busca de um novo nome. Quando achamos que o autor já atingiu a plenitude da escrita no livro, ele nos alerta sobre as similaridades entre o corpo trans em transição e os refugiados, apenas para mais adiante, em “Uma cama na outra Babilônia”, sermos surpreendidos com uma reimaginação, ou pesadelo, se preferir, em que ele, devido à escassez de sono, e as mudanças no corpo e na voz (por causa da terapia hormonal) começa a se ver em um universo kafkiano, se transformando no próprio Gregor Samsa.
Algo que chama a atenção é a preocupação do autor não somente com a geração atual de pessoas gays, trans, intersexo e queer, mas também com as gerações futuras de crianças renegadas, malditas, as que já nascem mortas e impedidas de viver verdadeiramente. Como foi escrito em “Quem defende a criança queer?”, a direita conservadora quer um futuro comandado pelo cisheteropatriarcado, ou seja: com homens tóxicos e mulheres submissas. Portanto, ou você é hétero ou seu corpo não existe. Preciado constrói cada crônica enquanto denuncia direta ou indiretamente a ditadura binária atual, de modo que não é surpresa nos depararmos com uma crítica à cisgêneridade da educação nas escolas de ensino médio (uma vez que nos livros de biologia os corpos só existem enquanto homem e mulher), quando o autor escreve “Meu corpo trans volta-se contra a língua daqueles que o nomeiam para renegá-lo” (p.225)
Capa da versão original em espanhol de Um apartamento em Urano
Durante toda leitura sentimos algo se completando na escrita do autor à medida em que ele viaja de país a país, à medida em que entendemos a sua jornada simbiótica-cultural de redescobrimento, se tornando completo, quem ele realmente era. Em última análise, ler Preciado na primeira semana de 2021 foi um revigorante frescor, um oásis de uma boiolagem (no melhor sentido da expressão) mais do que necessária nesse atual deserto de conservadorismo da extrema direita.
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