Zygmunt Bauman analisa decadência das relações humanas em “Amor Líquido”

“Em nosso mundo de furiosa ‘individualização’, os relacionamentos são bênçãos ambíguas. Oscilam entre o sonho e o pesadelo, e não há como determinar quando um se transforma no outro.” – Zygmunt Bauman

Escrito originalmente em 2003 e publicado no Brasil em 2021 pela editora Zahar, Amor Líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos (traduzido por Carlos Alberto Medeiros) é um livro do filósofo polonês Zygmunt Bauman em que ele aborda de forma bastante pessimista — ou realista, dependendo do ponto de vista de cada leitor — as relações humanas no mundo pós-moderno. O autor, é importante destacar, não está interessado apenas nas relações amorosas no sentido literal, uma vez que relações humanas aqui significam um guarda-chuva que abrange desde a relação entre pessoas queridas, passando pelo abandono dos moradores de rua pelo estado, e finalmente, a onda de xenofobia e racismo sofrida pelos imigrantes — causada pelos próprios líderes norte-americanos e europeus, é preciso destacar — após os ataques de 11 de setembro de 2001.

Já no prefácio encontramos indícios de como a leitura se encaminhará, uma vez que em poucas páginas Bauman critica a individualização dos relacionamentos, onde já não existe reciprocidade genuína, ou mesmo filantropia sem segundas intenções. De acordo com o autor, o ser humano atual está somente preocupado em construir relações — sejam elas afetivas, profissionais ou sociais — caso ele receba alguma satisfação futura, e essa satisfação pode variar desde uma noite de sexo entre dois (ou mais) estranhos após um encontro conseguido através de um aplicativo de paquera, ou a promessa de sexo após um jantar caro, uma proposta de emprego, etc. Acho, sinceramente, que o autor acaba sendo bem bondoso ao dizer que só atualmente nos comportamos assim, visto que desde os primórdios o ser humano está sempre querendo ser melhor às custas do outro e pensando com segundas, terceiras e quartas intenções.

Com pouco mais de 190 páginas, o livro é dividido em quatro capítulos: “Apaixonar-se e desapaixonar-se”, em que o autor analisa a fragilidade e a superficialidade das relações — que aqui são apropriadamente chamadas de “relações de bolso” (é interessante o uso desse termo uma vez que a analogia funciona tanto para a era digital das relações, como também para o aspecto descartável das mesmas); “Dentro e fora da caixa de ferramentas da sociabilidade”, onde é abordado o conceito de família (sexo, gravidez, maternidade, paternidade, etc.) no contexto atual onde nos sentamos à mesa — se é que ainda sentamos — com nossas faces enterradas nas telas dos celulares sem nos darmos conta de que estamos próximos de pessoas queridas; já em “Sobre a dificuldade de amar o próximo”, o autor começa, a partir do livro O mal-estar na civilização, de  Freud, uma longa discussão filosófica sobre a frase “amar o próximo como a si mesmo” (como e por que devemos amar o próximo? Qualquer próximo?); e finalmente, no que considero o melhor capítulo, “Convívio destruído”, em que Bauman aborda a xenofobia e o racismo gerado pela paranoia pós-11/09.

Fonte: Época

Como escrevi no início, nossa percepção e nossa experiência — passadas ou atuais — com com relação aos temas abordados serão fundamentais em como iremos absorver as palavras alarmantes do autor, principalmente quando este aborda relações amorosas e sociais. É impossível, na verdade, negar como tudo está sempre mudando, ideias antes consideradas impermeáveis, sejam elas relacionadas ao amor, gênero e sexualidade, estão aos poucos se remodelando, se apropriando de outros conceitos, muitas deles criadas e popularizadas pelo Outro (Outro aqui pode ser considerado o negro, o gay, o imigrante, a trans, o autore não-binárie). É sintomático, portanto, que Judith Butler, com seu seminal Corpos que Importam, seja citada pelo autor quando ele aborda os aspectos “alteráveis, transitórios e passíveis de subversão” (p. 74) das novas configurações de gênero e sexualidade.

“Nesta terra fatiada em Estados soberanos, os sem-teto são também sem-direitos, e sofrem, não por não serem iguais perante a lei, mas porque não existe lei que se aplique a eles e nas quais possam se pautar, ou a cuja proteção possam recorrer, em seus protestos contra a rigorosa condição a que foram submetidos.” – Zygmunt Bauman 

Sobre a imigração, o autor dedica cerca de 40 páginas no último capítulo intitulado “Convívio destruído”, em que examina o tratamento recebido pelos imigrantes em países e cidades comandados por partidos conservadores através da política do medo e do terror em suas promessas em época de eleição. É costumeiro vermos imigrantes serem tratados como se fossem inerentemente criminosos (alguém ainda lembra quando Trump disse que “mexicanos são estupradores” e que “todos os haitianos tinham AIDS”?, ou dos médicos brancos e loiros xingando os médicos cubanos em 2013?). Não obstante, o autor mostra estudos que indicam que imigrantes possuem mais chances de serem vítimas de algum crime enquanto estiverem fora de seus países do que cometer algum crime de fato. Sofrem com a assimilação cultural, além de que “políticos de toda a Europa usam o estereótipo de que ‘o crime é causado por forasteiros’ para ligar o antiquado ódio étnico à preocupação com a segurança pessoal, mais palatável.” (p. 146) Ao explicar o não lugar dos imigrantes, fica evidente o abismo que eles se encontram, visto que enfrentam leis quase kafkianas, uma vez que os estrangeiros são comumente detidos indefinidamente e acusados de terem infringido leis que nem sequer existem, sem saber como poderão se defender de acusações feitas por todos e por ninguém ao mesmo tempo.

Nos falta mais Hannah Arendt em nossas vidas, uma vez que ela advertia que a abertura aos outros seria a precondição da humanidade no sentido primeiro da palavra. Nos falta dialogar de fato e não apenas esperar nossa vez de falar nossas verdades — que achamos sempre absolutas. Nos falta abraçar o Outro, e não varrê-lo para debaixo dos tapetes da sociedade.


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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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