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Literatura Literatura estrangeira

A maternidade abordada em “Distância de resgate”, de Samanta Schweblin

Com uma trama claustrofóbica e opressiva, Distância de resgate é o romance de estreia da autora argentina Samanta Schweblin, que chega em sua segunda edição no Brasil pela editora Record. Abordando a maternidade como um pesadelo — com toques de terror surrealista —, a autora nos apresenta duas mulheres que vivem em uma pequena cidade — que muitas vezes mais parece uma vila de interior — assolada por uma maldição: grande parte dos bebês do local nasce com a certeza de que irá desenvolver problemas de saúde devido à grande quantidade de veneno do solo. Às vezes as doenças podem passar de mãe para filho durante a gestação, às vezes podem surgir nos primeiros anos de vida. A única certeza é que quando a hora chegar não adianta recorrer aos hospitais. A solução é uma senhora que vive em uma casa verde; uma idosa que faz uma espécie de ritual onde a alma e a doença da criança doente é transportada para uma criança que ainda irá nascer. Sim, o filho se salva, mas assim que a troca acontece, ele deixará de ser “o” filho, se transformando em “alguém que não morreu totalmente”.

São quatro personagens principais: Carla e Nina, sua filha pequena, e Amanda e seu filho David, que possivelmente está morto, mas que conversa com Carla, apenas em seu ouvido. De imediato só sabemos que David fala algumas coisas no ouvido de Carla. Gradativamente, entretanto, ficamos sabendo que todos estão em um carro rumo ao pronto-socorro, uma vez que David foi envenenado por algo que comeu no solo, possivelmente ervas. Existe toda uma discussão acerca do capacitismo, exemplificada pela relação de Omar com seu filho, David.

Com uma narrativa complicada, tortuosa e opressiva, o leitor sente como se estivesse em um corredor apertado, escuro, sendo atacado por todos os lados por braços que saem das paredes. Curiosamente, até mesmo a diagramação das páginas — com margens largas e com pouco espaço para o texto, que fica apertado entre as margens — funciona como uma espécie de afunilamento, como se o livro estivesse tentando oprimir o leitor. Agora imaginem uma mãe em um ambiente como esse? A “distância de resgate” do título, aliás, significa uma distância imaginária do tamanho do cordão umbilical, ligando a filha da protagonista ao seu estômago. Ou seja, uma espécie de distância segura em que em caso de algum acidente, a mãe estará próxima o bastante para salvar a filha. Isso pode ser entendido como um instinto materno, bem como um comentário acerca da falta de presença paterna nas famílias, visto que nenhum pai é realmente presente no romance, e quando aparecerem, são aversos a qualquer tipo de contato com os filhos.

Nunca sabemos exatamente o que está acontecendo, nem como os personagens mudam de lugar em um piscar de olhos. Por exemplo, em um momento eles estão saindo de casa, e no outro já estão recebendo tratamento em um hospital, por enfermeiras que parecem ter sido despejadas na narrativa diretamente de um filme argentino de terror baseado no livro O duplo, de Dostoievski, para, no parágrafo seguinte, estarem dando voltas em torno de um poço de um quintal inexplicavelmente perigoso. Já Nina, aparece e desaparece do lado de sua mãe quando bem entende, gerando uma sensação de perigo iminente. Perigo, aliás, que está presente em todas as cenas de Nina. 

É impossível escrever uma resenha informativa acerca dos detalhes da narrativa porque, como deve ter ficado claro, o livro é propositalmente confuso, obrigando o leitor a pensar, repensar, pensar outras vezes e repetir o procedimento enquanto tenta encaixar as peças desse quebra-cabeça, para lhe dar algum tipo de sentido. Sintomaticamente, o livro foi lançado nos Estados Unidos com o título Fever Dream, que convenhamos, é muito mais apropriado, porque de fato estamos diante de um romance que é literalmente um pesadelo, uma espécie de delírio causado por uma febre de 40ºC.


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