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Literatura estrangeira

O diálogo de “Memórias do Subsolo”, de Fiódor Dostoiévski, com os tempos atuais

“Nós já nascemos mortos e faz tempo que não nascemos mais de pais vivos, e isso nos agrada cada vez mais.” – Fiódor Dostoiévski

Publicado originalmente em 1864, Memórias do Subsolo, é um romance do escritor russo Fiódor Dostoiévski — muitas vezes classificado como uma novela — publicado em forma de serial na revista Epoch, fundada pelo próprio Dostoiévski em parceria com seu irmão, Mikhail Dostoiévski — que de forma niilista, aborda temas como pobreza, isolamento social e o desespero perante aos princípios ou valores humanos.

Dividida em duas partes, a obra pode ser considerada um paradoxo literário. Trata-se de um livro extremamente desagradável, cujo narrador não confiável e não identificado, e igualmente desagradável, trata todos à sua volta com desprezo, ignorância e desdém — apesar dele próprio ser visto como um verme ambulante que é constantemente ignorado. Mas, curiosamente, simpatizamos totalmente com o protagonista.

De qualquer forma, somos avisados pelo autor, na apresentação da obra — e pelo próprio narrador, que abre o texto assumindo ser um homem raivoso, doente e absolutamente sem graça — de que a leitura será desagradável e brutalmente estranha. Então estejam avisados se decidirem por uma possível leitura.

Parte I – Subsolo

A primeira parte é escrita como um longo, acusatório e raivoso monólogo, onde o protagonista sem nome, diretamente das profundezas de sua casa suja, feia e caindo aos pedaços, ao que tudo indica, descarrega sua raiva cultural, política e social em seu caderno de anotações. Funcionário público aposentado, pobre e com uma visão 100% distorcida de si mesmo, o sujeito se entende como um intelectual supremo — como a maior e mais esplêndida mente entre os seus amigos. É curioso como um sujeito sem vida social, e completamente viciado em ser humilhado, consegue possuir tantas opiniões sobre o tema. Por mais desagradável que o protagonista e o romance possam ser, trata-se, sem dúvidas de um livro revolucionário, afinal vários temas abordados na primeira parte podem ser encontrados em obras de autores posteriores a Fiódor Dostoiévski como Kafka, Ralph Ellison, Albert Camus e Nietzsche; ou até mesmo em filmes de diretores atuais como Richard Ayoade.

Parte II – A propósito da neve molhada

Talvez a metade mais acessível do romance, em “A propósito da neve molhada” o narrador abandona a forma de monólogo e passa a escrever de modo transgressivo uma espécie de autobiografia dividida em três partes, todas, é preciso dizer, são tão, ou ainda mais repulsivas do que o segmento “Subsolo”. De todo modo, é um segmento absurdamente anacrônico em comparação com o tom usado até então. Aqui existe uma espécie de humor fundado em situações completamente absurdas, que funcionam como divisórias entre as sub-partes.

Na segunda parte, o narrador sem nome se convida para um encontro com amigos de escola, agora todos na faixa dos quarenta anos, e que ele odeia com todas as forças por serem todos de classe média, bem-sucedidos em seus empregos. Não é preciso dizer que o grupo também o considera um verme. Toda a construção dos acontecimentos destas três partes é engraçadíssima, com passagens baseadas no humor do absurdo, na ideia de que o sujeito sente prazer e a necessidade de ser humilhado. A noite é pontuada pelo consumo excessivo de álcool, principalmente pelo protagonista, o que, obviamente, é a receita certeira de um desastroso fim de noite. A bebedeira é transportada para um bordel, onde o narrador passa uma noite com uma jovem prostituta. O longuíssimo encontro com a jovem forma a terceira e última parte, que transbordando crises existenciais desesperadoras — bem mais do que no restante da obra, é preciso avisar —, sem dúvidas, é o grande atrativo do romance.

A obra é um paradoxo literário: uma leitura que apesar de ser desagradável, não nos faz querer abandoná-la por um segundo sequer. Pior: conseguimos não apenas simpatizar com a mente doentia do narrador como também chegamos de fato — e essa é a parte mais assustadora — reconhecer traços de nós mesmos na personalidade doentia do sujeito, o que nos faz ficar a seu lado em vários momentos de suas memórias.

Estamos diante de um anti-livro protagonizado por um anti-herói isolado em sua caverna, afastado do mundo, com bastante tempo para examinar suas próprias questões pessoais, filosóficas e existenciais. Mas será que todo esse tempo afastado da sociedade faz algum bem ao sujeito? Muitos paralelos podem ser traçados não apenas com o distanciamento social enfrentados por nós atualmente, mas também com a realidade do mundo virtual. Memórias do Subsolo é uma obra soberba, completamente à frente do seu tempo.


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