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Ficção

Homofobia senegalesa em “Homens de verdade”, de Mohamed Mbougar Sarr

Não é novidade para nenhum de nós a hipocrisia de igrejas, líderes religiosos e “religiosos joões-ninguém” espalhados pelas ruas de nossos bairros quando a questão é respeitar não apenas a sexualidade alheia como também qualquer tipo de pensamento progressista e unificador. Muitos deles defendem os valores tradicionais bíblicos e familiares ao mesmo tempo em que possuem amantes e estão no 4º casamento — todos nós conhecemos o tipo. Ainda existem os crimes. Basta uma rápida pesquisa para nos depararmos com centenas de atrocidades cometidas pela igreja ao longos dos séculos contra tudo e todos que simbolizavam uma ameaça ao cristianismo. 

Muitos de nós conhecemos a história de Joan of Arc, jovem francesa que foi queimada viva aos 19 anos após ter cometido o terrível crime de usar roupas masculinas — a igreja entendia o que hoje conhecemos como Crossdressing como uma forma de heresia, ou seja: um crime capital — em maio de 1431. Curiosamente, muitos estudiosos afirmam que Joan of Arc usava roupas masculinas também para se proteger de estupros, já que ela liderava um exército de centenas de homens. Ainda existe o infame caso das várias mulheres queimadas vivas e por enforcamento sob acusação de serem bruxas na Europa e em Salem, Massachusetts, entre 1692 e 1693. Não se preocupe, essas duas referências de vários séculos atrás não estão gratuitamente, já que os dois exemplos estão muito presentes na narrativa do livro que analisarei a seguir.

Mas como escrevi no início, nem seria necessário retornarmos tão longe na história para descrevermos as barbaridades cometidas pela igreja através de seu extremismo religioso. De casos de pedofilia acobertados por papas, ou mães solteiras exploradas por freiras na Irlanda (na ocasião, foram encontrados cerca de 800 esqueletos de recém-nascidos enterrados sem caixão ou lápides), passando pelo lado obscuro de Madre Teresa — que mesmo recebendo dinheiro dos ditadores haitianos François “Papa Doc” Duvalier e Baby Doc Duvalier, foi acusada por vários historiadores de maltratar os doentes que supostamente deveria estar cuidando.

Mas, de qualquer forma, embora todos os exemplos citados acima sejam em sua maioria praticados pela igreja católica, igrejas de outras religiões, sem surpresas, também praticaram e praticam uma infinidade de crimes em nome dos tais valores familiares, entre eles as leis anti-lgbtqia+ — o que nos leva ao Islamismo, que é a religião mais predominante no Senegal, país de origem de Mohamed Mbougar Sarr, que por sua vez, é o autor de Homens de verdade, romance publicado no Brasil em 2021 pela editora Malê, e traduzido por Fernando Klabin. Em 2021 a obra foi ganhadora do Prêmio Goncourt, um dos mais importantes da França.

Na história, cuja trama — narrada em primeira pessoa — acontece em Dakar, capital do Senegal, iremos acompanhar Ndéné Gueye, um professor universitário de 27 anos que após se deparar com um vídeo viral em que um o corpo de um homem é desenterrado e arrastado de um cemitério, e em seguida, linchado por uma multidão de fanáticos religiosos, decide investigar quem era aquela pessoa. Contando com a ajuda de Rama, uma trabalhadora sexual bissexual que ele se relaciona; Angela, uma funcionária da Human Rights Watch em Dakar — que também se relaciona com Rama —; e Awa Niang, um praticante de Crossdressing amado no underground local, Ndéné irá embarcar em uma obsessiva investigação particular para descobrir tudo sobre o homem morto, mas, principalmente — em um previsível clichê — sobre a sua própria sexualidade.

Primeiramente, é imprescindível destacar a quantidade exorbitante de violência — verbal e, principalmente, física — contra qualquer pessoa que se considere parte da comunidade queer na narrativa. Por tratar-se de uma história sobre os efeitos do fanatismo religioso interseccionalizado com a homofobia — onde ser qualquer coisa além de heterossexual pode significar uma pena de morte —, o leitor irá se deparar com longas e revoltantes passagens não apenas com discurso de ódio, mas também descrevendo vários atos de violência, linchamentos, assassinatos de pessoas lgbtqia+ enquanto acompanha o arco dramático de Ndéné Gueye, que no caminho precisará enfrentar a homofobia em sua própria família, já que seu pai, um líder religioso, não hesita em dizer que ele próprio desenterraria e queimaria o corpo do filho caso ele se assumisse gay. Logo, é um romance que vai causar vários gatilhos em qualquer pessoa que faça parte da comunidade queer.

Imagem: Divulgação

Ndéné, aliás, pode ser considerado uma espécie senegalesa do que aqui no Brasil chamamos de esquerdomacho heteronormativo: intelectual e apreciador de diretores como Stanley Kubrick e escritores como Sade, Paul Verlaine e Arthur Rimbaud, o sujeito se considera transgressor o bastante para “aceitar” que sua parceira sexual tenha outros parceiros (ou parceiras) sexuais, já que em sua opinião as lésbicas são menos escandalosas, e por conseguinte, mais suportáveis, mas ao ser questionado por ela — uma bissexual assumida, que pode ser morta ao andar na rua — sobre a sua opinião sobre tratamento que pessoas queer recebem no Senegal, ele não demora a cair na falácia religiosa, histórica e cultural ao fazer um malabarismo para justificar sua homofobia. Pior, de forma ainda mais alarmante, mas ainda sim, sintomática, ele expressa todo o seu “progressismo cultural e sexual às avessas” ao tentar explicar à amante que considera exótico o fato de mulheres lésbicas e bissexuais se relacionarem entre si — e o fato dele assumir que considera o pornô lésbico excitante é a cereja do bolo. Como disse antes, trata-se de uma versão senegalesa do clássico esquerdomacho.

Infelizmente, Ndéné — e sua jornada de autoconhecimento — é o ponto mais fraco do romance —, tornando-se praticamente um personagem secundário e esquecível em sua própria história. Talvez seja o seu olhar objetificador de descrever as personagens femininas, principalmente as lésbicas e bissexuais, que são, na minha opinião, os pontos altos do romance. No entanto, o autor merece aplausos pelo seu cuidado ao construir o trio Rama, Awa Niang e Angela, três personagens repletos de nuances, de consciência política, sexual e racial que, curiosamente, apesar de ao que tudo indica, terem sido escritos para servirem de degrau para que o protagonista encontrasse o seu propósito sexual dentro da homofobia senegalesa, acabam — felizmente, graças a sua tridimensionalidade — ofuscando o protagonista. 

Rama, com sua personalidade imponente, seu empoderamento, e sua liberdade sexual; Awa Niang com a sua tristeza e desgaste por trás de anos enfrentando a morte, bem como um desolador passado enquanto pai de família; e Angela, claro, já que ela simplesmente se recusa a cair na homo (e bi)fobia disfarçada de elitismo cultural de Ndéné, cujo malabarismo para justificar sua possível homofobia é ao mesmo tempo absurdo e plausível. Em determinado momento, por exemplo, o sujeito tem a coragem de dizer: “Talvez eu seja homofóbico, mas homofóbico por paixão estética…” (p. 81). Felizmente, assim como nós, as duas mulheres na vida do sujeito também não caem nessa baboseira.

No entanto, apesar de ter um protagonista fraco e diversas cenas de violência, o livro consegue nos prender em sua narrativa graças ao seu aspecto investigativo quando Ndéné passa a ser alvo de rumores acerca de sua sexualidade, principalmente através de uma cena particularmente assustadora quando ele é enfrentando por seus alunos após sugerir que eles deveriam estudar o poeta francês Paul Verlaine — que era abertamente homossexual —, e quando personagens introduzidos no início ganham mais profundidade na segunda metade da história. Entre eles estão o Sr. Coly, um simpático professor de letras e amigo de Ndéné; Yatma, um jovem misterioso que ganha destaque em uma subtrama que em certos momentos nos remete ao conto As babas do diabo, de Julio Cortázar; e, principalmente, a mãe do jovem cujo corpo havia sido exumado do cemitério no início do romance. Pouco a pouco as peças desse quebra-cabeças começam a fazer sentido, a identidade do corpo do jovem é revelada, e o terceiro ato acaba nos levando a um impressionante, homoerótico e afrodisíaco clímax (sem trocadilhos) que ocorre em uma praia durante um belíssimo nascer do sol.

Em última análise, com Homens de verdade, Mohamed Mbougar Sarr não poupa o leitor ao descrever e investigar os efeitos de séculos de extremismo religioso e homofobia em seu país e cidade de origem, mas ao mesmo tempo, cria uma interessante e desafiadora cápsula (auto?)biográfica de um protagonista não tão interessante que enfrenta seus próprios demônios com ajuda de coadjuvantes que brilham muito mais do que ele e que com certeza mereciam suas próprias histórias.

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