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Filosofia

Uma jornada por “Na quebra: A Estética da Tradição Radical Preta”, de Fred Moten

O jazz é uma forma de violência. Ele precisa ser.” — Fred Moten

O que escritores como Jacques Lacan, Judith Butler, Gayatri Spivak, Derrida, Roland Barthes, James Baldwin, Adrian Pipper, Angela Davis e Lee Edelman possuem em comum com John Coltrane, Sun Ra, Ornette Coleman, Cecil Taylor e Duke Ellington — artistas consagrados do Jazz? É o que o leitor se perguntará ao se deparar com Na quebra: A Estética da Tradição Radical Preta.

Na obra, publicada no Brasil em 2023 pela editora N-1 Edições, com tradução de Matheus Araujo dos Santos — após duas décadas de sua publicação original com o título de In the Break — deparamo-nos com uma exploração inovadora e provocadora das expressões estéticas, culturais e resistentes oriundas da comunidade negra através de uma lente filosófica fundamentada, ao menos em parte, no conceito do erotismo existente nas composições do Free Jazz. Fred Moten, um renomado crítico cultural, escritor e professor dissecou as complexidades do pensamento vanguardista da arte negra radical e de forma audaciosa desafiou as concepções convencionais de política, identidade e expressão artística — tal qual como fizeram os pioneiros do movimento aqui analisado.

A obra, caracterizada por um estilo acadêmico denso e desafiador, requer atenção, paciência e um leitor perspicaz sem anseios por um livro exclusivamente sobre Jazz. Se este for o caso, o leitor deve abster-se de iniciar a leitura, visto que o texto apresenta uma abordagem rigorosa e multidisciplinar que exige um certo nível de apreciação e conhecimento de história, história musical e cinematográfica, política, teoria e doutrinas negras, além, é claro, de uma compreensão rudimentar do movimento Free Jazz, que despontou nos últimos anos da década de 1950, dada a vasta gama de referências aos renomados freejazzistas associados a essa vertente musical controversa, que, inclusive, divide opiniões entre os próprios aficionados do gênero. 

Moten amplia sua linha de pensamento ao abordar as diferentes fases do Free Jazz protagonizadas por ícones como John Coltrane, Sun Ra, Ornette Coleman, Cecil Taylor e Duke Ellington ao promover uma exploração mais abrangente durante a análise sobre o ato de improvisação praticado por músicos negros, identificando-o como uma ruptura com o status quo brancocêntrico, seja este compreendido no âmbito cultural — música, cinema, teatro, literatura —, ou sexual, social e político. Em outras palavras, Fred Moten examina e investiga a performance negra, as origens da improvisação e as características e qualidades especiais atribuídas por ele à arte, literatura e música negra no século XXI.

Créditos: John D. and Catherine T. MacArthur Foundation

A densidade textual de Moten adquire camadas ainda mais desafiadoras à medida que este se dedica a examinar o [homo]erotismo e os impulsos sexuais presentes no “texto negro” — termo que no contexto da obra pode abranger tanto as composições do Jazz quanto obras literárias como romances de autores como Ralph Ellison e James Baldwin, ou até mesmo peças teatrais, e menciono aqui, por exemplo, a figura de Lorraine Hansberry, embora o autor tenha decidido se deter durante a maior parte da segunda metade da obra diante de “The Toilet”, uma peça de teatro escrita por Amiri Baraka, considerada por muitos especialistas como uma carta de amor à juventude homossexual da época — apesar de Baraka, que teve sua [possível homo] sexualidade discutida à exaustão — tenha sido acusado diversas vezes de ser homofóbico. Moten aborda essa temática filosoficamente, dialogando com as teorias [Queer] de Freud, Derrida, Judith Butler e, de maneira peculiar, com os sonetos de Shakespeare — outro autor cuja sexualidade foi e ainda é constantemente debatida —, especialmente aqueles dedicados à figura conhecida como Dark Lady, aqui renomeada como Dama Escura, os quais servem como base para uma análise intrínseca ao próprio estudo de Moten sobre um poema de Baraka intitulado “The Dark Lady of the Sonnets”, que por sua vez fora dedicado à Diva do de Jazz Billie Holiday.

Um dos pontos culminantes do livro emerge quando Moten empreende uma extensa e dolorosa análise que compara os falsetes vocais de cantores negros com os gritos e gemidos de dor emitidos por pessoas negras que foram linchadas, estupradas e assassinadas pela polícia norte-americana ou por membros da Ku Klux Klan ao longo de várias décadas, e um exemplo usado pelo autor para ilustrar seu pensamento é o horrendo linchamento do adolescente Emmett Till, brutalmente assassinado aos 14 anos no Mississippi, em 1955. Moten estabelece um elo impactante entre a (hoje famosa, à época, sensacionalista) fotografia do caixão aberto de Emmett Till e os gemidos e falsetes dos artistas negros mencionados no início deste parágrafo. Para contextualizar: Emmett Till foi torturado, morto e jogado em um rio por homens brancos após ser acusado injustamente de ter assobiado para uma mulher branca. Quando seu corpo foi encontrado em um rio, sua mãe decidiu realizar o velório com um caixão aberto para que o mundo pudesse ver o que o racismo norte-americano havia feito com o seu filho. Como consequência, uma fotografia em close-up do rosto deformado do filho foi parar em vários jornais e revistas norte-americanas.

Ainda sobre a exploração da dor negra como performance, Moten constrói uma imprescindível análise sobre um fragmento da biografia de Frederick Douglass — escrita por Saidiya Hartman — em que a autora se abstém de explorar um episódio em que Douglass presencia sua tia Hester ser açoitada durante a escravidão, mas faz várias referências à sua decisão de não explorar o crime, paradoxalmente explorando e transformando a dor negra em performance. Moten argumenta que tal atitude constitui, em si mesma, uma performance da dor negra. Neste contexto, torna-se impossível não estabelecer uma conexão com o auge do Movimento Vidas Negras Importam, em que um considerável número de registros de agressões físicas perpetradas contra pessoas negras era amplamente disseminado por meio das plataformas de mídia social, visando suscitar a consciência acerca crimes que, em sua essência, se manifestavam na verdade como uma performance da dor negra.

Para concluir, Na quebra: A Estética da Tradição Radical Preta é um livro que merece um leitor ativo e questionador e certamente não se destina a ser uma mera distração ou uma leitura relaxante à beira-mar. O leitor deve manifestar um genuíno interesse tanto pelo conteúdo que Moten escreve quanto pelas citações que ele incorpora, uma vez que a apreciação do valor inestimável dessa obra requer a compreensão de que cada citação transcende a mera natureza de uma referência isolada. Em diversas ocasiões, parece ser intenção do autor apresentar suas próprias ideias e referências, mas compelindo o leitor a deixar temporariamente a leitura da obra em questão para conduzir pesquisas sobre cada indivíduo mencionado, bem como explorar suas principais obras, a fim de estudar e compreender seus pensamentos e teorias, para somente então retornar a “Na quebra” munido de um contexto histórico-intelectual adequado para absorver, quem sabe — na melhor das hipóteses —, 50% do material que está sendo analisado. Decisão que convenhamos, pode afastar grande parte dos leitores.

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