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    Ficção Literatura estrangeira

    Salvação mútua em “Voltar para casa”, de Toni Morrison

    “Qualquer homem negro que ousa cuidar de sua vida interior, de sua alma, já está se recusando a ser uma vítima.” — bell hooks

    Voltar para casa, publicado no Brasil pela Companhia das Letras em 2016, é o décimo romance de Toni Morrison. A obra possui uma narrativa que gira em torno de Frank Money, um veterano de 24 anos que lutou na Guerra da Coreia e encontra-se sem rumo na vida por sofrer de pesadelos resultantes de Transtorno de Estresse Pós-Traumático. Ao descobrir que Ycidra, sua irmã mais nova foi sequestrada por um médico e mantida em cativeiro, Frank relutantemente embarca em uma jornada para Lotus, sua cidade, para tentar salvá-la — e a si mesmo. Esse retorno é permeado por uma série de reflexões sobre masculinidade negra, segregação racial e traumas psicológicos causados pela guerra em soldados negros, uma vez que a narrativa se desenvolve em 1950, dois anos após o presidente Truman ter assinado a ordem que acabava com a segregação no exército.

    Toni Morrison tem o dom de escrever primeiros parágrafos magistrais e aqui ela atinge um patamar sublime ao iniciar o romance narrando um encontro quase místico entre Ycidra e Frank, ainda crianças, e um grupo de cavalos selvagens. Voltando a Frank, o mistério sobre como ele chegou ao hospício em que se encontra e o que aconteceu com ele é compartilhado tanto por sua mente confusa quanto por nós, leitores, de modo que sua falta de clareza reflete os traumas e a fragmentação de suas memórias. Angustiado, ele busca compreender seu próprio passado e as circunstâncias que o levaram até ali, mas as únicas dicas que temos é fornecida por ele mesmo, e aqui vale ressaltar que a confiabilidade no narrador, no caso de Frank, será constantemente questionada — inclusive por ele próprio —, visto que os traumas da guerra afetaram sua memória e sua capacidade de contar sua própria história de forma linear e plausível.

    Com uma abordagem narrativa que desafia os leitores a questionarem a veracidade dos eventos narrados e a mergulharem nas camadas mais intensas da psicologia do personagem, que mesmo atormentado por fantasmas e desejos criminais, precisa escapar do hospício e retornar à Lotus, a autora cria uma obra que coloca o leitor no lugar de seu protagonista, um sujeito que neste momento se depara com o primeiro de muitos obstáculos, já que ele não tem dinheiro algum e encontra-se internado em um hospício em uma cidade que não sabe qual é. Não é difícil perceber que estes momentos de esquecimento e confusão refletem a dor e o peso psicológico que Frank carrega, fruto das atrocidades cometidas e vivenciadas na guerra.

    Em determinado momento há o início de uma jornada através de várias viagens de trem, fazendo o leitor testemunhar as consequências do racismo, da guerra e da pobreza na população negra dos Estados Unidos. O livro transforma-se em uma espécie de Road Novel — literalmente, Romances de Estrada. No entanto, essas viagens estão longe de serem resumidas ao simples ato de salvar Ycidra, visto que Toni Morrison utiliza esses momentos para examinar vários temas, entre eles, os crimes cometidos contra a população negra ao longo da história norte-americana, incluindo a escravidão, traumas psicológicos resultantes da guerra, linchamentos, práticas de eugenia, esterilização forçada e delírio coletivo causado pelo medo do comunismo — detalhe que dialogava inclusive com a situação do Brasil no auge do bolsonarismo à época da publicação do romance.

    Acho interessante repensar nos motivos que faziam homens negros se arriscarem na guerra e como Toni Morrison insere esta subtrama em sua obra. Segundo bell hooks em A Gente é da hora: homens negros e masculinidade, livro publicado originalmente em 2004, milhares de homens negros da época foram influenciados por um Estado supremacista branco capitalista imperialista a escolher a guerra como uma tentativa de recuperar o status patriarcal, e com ele, sua masculinidade — que de pouco a pouco foi solapada juntamente com sua autoestima. De forma sucinta, hooks analisa como essa busca por uma masculinidade moldada pela branquitude funcionou como uma espécie de fábrica de homens negros misóginos que assolou e assola a população negra por gerações. Quem sofria com esse comportamento era, é claro, a mulher negra, que mesmo sendo na maioria das vezes a principal provedora da família, ainda apanhava de um marido violento que se sentia emasculado por não ser o “homem da casa” e buscava essa masculinidade através de atos violentos, inclusive sexualmente — detalhe que está diretamente ligado a um momento chave na construção de um personagem-chave de Voltar para casa.

    Ao longo da narrativa, somos apresentados à trajetória de Frank desde seu retorno da guerra, ocorrido no ano anterior, quando a integração forçada no exército contrastava com a realidade de um país no auge das Leis Jim Crow. Desde então ele vagou pelas ruas de Seattle, gastou seu salário militar em jogos de azar, teve empregos temporários que abandonou, e vivenciou um relacionamento com uma mulher chamada Lily — que ele não conseguiu manter. Neste contexto, Frank Money se depara com o racismo e a desigualdade em diversas áreas da sociedade — aqui faço uma pausa para o humor pontual de Toni Morrison na ironia de escolher o nome de seu protagonista, visto que dinheiro é algo que o sujeito nunca possuiu —, e aqui a autora habilmente constrói uma narrativa em que as experiências de Frank são entrelaçadas com as de Lily e Ycidra, que abandonada por um namorado pilantra, acaba, assim como o irmão, perambulando de emprego em emprego até conseguir o que ela esperava ser o emprego dos sonhos na casa de um médico branco de bom coração. Os capítulos vão alternar as perspectivas destes personagens, adicionando profundidade à trama de forma orgânica e pelo menos em grande parte, urbana — um detalhe que contrasta com a ruralidade tão comum em vários dos romances da autora. Outro detalhe que diferencia Voltar para casa de grande parte da obra da autora é o fato de que, ao contrário da maioria, este romance é focado em um protagonista masculino.

    O clímax do romance, apesar de ser construído com habilidade, sofre devido à uma conclusão apressada que acaba se transformando em uma espécie de anticlímax, uma vez que após o que deveria ser a finalização da jornada de ambos os irmãos, a história ainda se arrasta até ser realmente finalizada. No entanto, apesar destes pequenos deslizes, a grandeza do livro reside na discussão profunda sobre o conceito de “lar” em um país segregado. Uma reflexão crítica sobre a noção de pertencimento e identidade que permeia toda a narrativa, nos desafiando a questionarmos nossas próprias concepções sobre o que podemos e devemos considerar como lar. Morrison, através das angústias de seus protagonistas constantemente questiona o leitor: como podemos chamar de lar um país que nos envia para morrer em guerras e, quando milagrosamente retornamos, nos trata como animais?

    Ainda pensando em A Gente é da Hora, é interessante perceber paralelos entre a construção de Frank e sua busca pelo seu lar, principalmente quando entendemos o lar através do recorte metafísico usado por bell hooks. A autora escreve: “A cura da alma para homens negros exige um retorno ao Eu interior. Exige que não apenas ‘voltem para casa’, mas que se atrevam a fazer do lar um lugar onde a alma possa prosperar.” (p. 256). E é exatamente isso que Frank busca durante todo o seu arco dramático: ficar livre de sua masculinidade tóxica, e se tornar poderoso em seu lar verdadeiro, em outras palavras, prosperar, finalmente em seu lar mais poderoso: uma alma repleta de plenitude de amor.

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