Soberba biografia da Imperatriz do Blues, “Bessie Smith”, de Jackie Kay

“Não são apenas os blues de Bessie que fascinam, mas sua personalidade indomável, bêbada, promíscua, generosa e boca suja. As lendas e os mitos da Imperatriz seguirão vivos enquanto o blues sobreviver.”

Jackie Kay

Conseguir separar a obra do autor é para muitos uma tarefa praticamente impossível, e escrever sobre o seu ídolo de infância sem deliberadamente deixar de fora detalhes controversos e até mesmo negativos, parece ser algo bastante raro atualmente. Por vários motivos, muitos biógrafos decidem diluir ao máximo a vida dos biografados para que o legado deles não seja manchado. Jackie Kay, por outro lado, nos entregou Bessie Smith (Editora DBA), uma magnífica biografia que transborda ternura, admiração, paixão e criticidade — escancarando comportamentos que talvez possam afastar o fã que desconhece a vida pessoal da cantora, ou até mesmo o leitor que chegou à obra por acaso. Uma opção arriscada, mas honesta e sem remorsos — bem como foi Bessie Smith durante toda a sua carreira.

Aqui Bessie Smith é homenageada e questionada. Conhecida mundialmente como a “Imperatriz do Blues”, Bessie foi a vocalista mais popular do gênero nas décadas de 1920 e 1930 nos EUA, e uma das maiores influências nas gerações posteriores de artistas negros de outro estilo de Blues — aquele imortalizado por guitarristas como Chuck Berry, por exemplo. A artista também foi influência direta para várias Divas do Jazz das décadas de 50 e 60, entre elas, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Nina Simone, Billie Holiday e por último, e até mesmo de forma surpreendente, vocalistas do Rock Psicodélico setentista como Janis Joplin.

O ponto aqui é, incontestavelmente, o fato de Jackie Kay ser uma poeta talentosa disposta a escrever sobre Bessie Smith não a colocando em um pedestal, apenas destacando eventos importantes de sua vida em ordem cronológica. Negra e lésbica, Jackie Kay usa suas próprias memórias de infância — enquanto uma solitária criança negra adotada por pais brancos e comunistas em Glasgow — para refletir e especular sobre acontecimentos e cenários reais, ou até mesmo alguns que talvez não tenham acontecido de fato, mas que de alguma forma funcionam como paralelos entre sua vida e Bessie Smith — duas mulheres negras queers, solitárias e incrivelmente parecidas, ainda que de épocas completamente diferentes.

Bessie Smith em 1925. Fotografia: Michael Ochs Archives/Getty Images

Negra, gorda, orgulhosa de ser uma bissexual assumida e sexualmente insaciável, Bessie Smith era um verdadeiro acontecimento nas noites do período conhecido como o Renascimento do Harlem. Sem nenhum talento para agradar brancos ou negros — principalmente os negros intelectuais —, ela teve uma vída lendária repleta de noites selvagens dignas de um rockstar das décadas de 60 e 70 — mais um paralelo com Janis Joplin, cuja importância no legado de Bessie será abordada em alguns instantes. Sua trajetória foi pautada por extremos: nascida na pobreza em Chattanooga, no Tennessee, em 1894, ela era uma das várias filhas de William e Laura Smith — que faleceram antes dela ter idade suficiente para processar os acontecimentos. Sem parentes próximos, ela e os irmãos precisaram lutar para cuidar um dos outros, e foi assim que aos 10 anos, Smith começou a cantar nas ruas, acompanhada de seu irmão mais velho por alguns trocados como pagamento. Uma década depois, ela viria a se tornar a artista negra mais bem paga dos EUA.

Após vários anos viajando pelo país como membro da trupe de artistas de Ma Rainey — uma relação que gerou bastante especulações por parte da mídia, visto que ambas eram negras e bissexuais em uma época e que isso sequer era discutido —, Smith lançou “Downhearted Blues” pela Columbia em 1923. O disco vendeu nada mais nada menos do que 780 mil cópias nos primeiros meses, a transformando em uma sensação no país inteiro. É importante lembrar que naquele momento ela já era uma das maiores artistas do blues no sul dos EUA graças às suas turnês ao vivo. Com o sucesso, ela conseguiu proporcionar para si uma vida luxuosa, joias e vestidos caros. Mas, principalmente, pôde finalmente cuidar de seus irmãos. Infelizmente, com a fama, os problemas com bebidas que ela enfrentava desde a infância tornaram-se ainda mais evidentes. Mas outros problemas também surgiram: maridos cafajestes e parentes interessados em seu dinheiro. Entretanto, nenhum destes problemas se comparava à segregação. Ela e sua banda precisavam viajar quase o triplo por estradas secundárias para conseguir encontrar hotéis que aceitassem pessoas negras. Em determinado momento, Bessie Smith chegou a enfrentar sozinha vários membros da KKK que estavam prestes a queimar o lugar em que ela e sua banda estavam hospedados.

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“Lá estava ela, com mais dinheiro do que qualquer outra mulher negra no país, gravando seus discos, e, ainda assim, apanhando de seu marido que não tinha nenhum talento. Isso realmente diz algo sobre o poder do machismo.” — Jackie Kay

Quando “Downhearted Blues” havia se tornado um sucesso, Smith se casou com Jack Gee, um aspirante a policial que, de acordo com a autora, era um dos piores cafajestes já existentes na face da terra. Ciumento, violento e viciado na fortuna da esposa, ele a espancava com frequência — principalmente quando descobria as traições repetidas com várias mulheres e homens durante suas turnês. Como era de se esperar, o sujeito acabou ficando com todo o dinheiro de Bessie após sua morte, incluindo os direitos autorais de várias de suas canções. Ler sobre a vida de Bessie Smith foi talvez o meu momento literário preferido de 2022, mas, por mais que o livro seja soberbo, é frustrante testemunhar seu sofrimento e perceber que mesmo décadas depois da morte de Bessie, várias mulheres ainda sofrem nas mãos de homens imprestáveis, pois como sabemos, a solidão da mulher negra nunca deixou de ser uma realidade.

Em entrevista sobre Trapaça no Harlem, Colson Whitehead disse que escrever sobre tragédias nas vidas de pessoas negras nunca será considerado uma premonição, visto que é algo que eles vêm sofrendo sistematicamente ao longo dos séculos. O mesmo pensamento se aplica ao blues de Smith: suas narrativas abordaram o abuso sexual, a busca pelo amor, o racismo e a violência matrimonial sofrida pelas mulheres negras de sua época. No entanto, toda mulher negra vai entender o Blues de Bessie. Kay afirma: Bessie Smith nunca deixará se ser urgente, e a contemporaneidade de suas canções é o aspecto mais desolador desta obra quando pensamos na realidade das mulheres negras. O colorismo também está presente em vários momentos na carreira de Smith.

Como escrevi no início deste texto, Jackie Kay não tem nenhuma intenção de esconder o comportamento antiético, antiprofissional e problemático de Bessie Smith — embora que em várias ocasiões ela, Bessie, pareça apenas reproduzir ações que eram comuns durante sua vida. Aqui ficamos sabendo de sua fama de maltratar os músicos de sua banda, os abandonando à noite sem pagamento em estradas desconhecidas — inclusive em estados segregados do sul, onde como já foi escrito acima, não existiam hotéis que aceitavam pessoas negras —, ficamos sabendo também de seu costume de trair seus maridos com mulheres e homens em orgias, de beber até cair, e de bater nas pessoas. Ela chegou inclusive a ser recusada em uma gravadora comandada por W. E. B. Du Bois, que a achou grosseira e sem modos quando ela parou no meio de uma gravação para cuspir. Todas essas pessoas ficaram bastante surpresas quando ela se tornou a grande estrela do Blues norte-americano, apesar de ser grosseira e boca suja — em outras palavras, não era uma negra submissa.

Smith chegou a ter um caso com Ruby Walker, sobrinha de seu marido — enquanto estava casada com o sujeito. Em determinada ocasião, Smith se jogou de uma escada para evitar ser confrontada após ele descobrir mais uma de suas traições. Aparentemente ela usava os ferimentos dessas quedas para evitar apanhar, apelando por uma possível sensibilidade do sujeito. Jackie Kay se questiona repetidamente como alguém tão imponente e importante como Smith se sujeitou a passar por isso — o que nos remete ao que ocorreu com Rihanna há alguns anos, ou em maior escala, com qualquer mulher extraordinária que se apequenou perante a homens medíocres.

Seu comportamento destrutivo, sua sexualidade, e principalmente o modo como ela se recusava a se rebaixar diante de pessoas brancas, fazia com que intelectuais e artistas negros a considerassem uma vergonha para a raça negra, e em mais um paralelo entre Kay e Smith — mulheres negras e queers orgulhosas de suas sexualidades em épocas completamente diferentes social, cultural e sexualmente — somos apresentados à homofobia dentro da comunidade negra e até mesmo entre pessoas LGBTQIA+, como ocorre atualmente com pessoas com passabilidade heterossexual que odeiam gays afeminados usando a mesma desculpa que os contemporâneos de Smith usavam contra ela.

E por falar em cantoras imponentes que nos deixaram de forma trágica, é impossível não citar a importância de Bessie Smith para Janis Joplin, e, de forma mais surpreendente, a importância de Janis Joplin no legado de Bessie Smith. Não deixa de ser sintomático, aliás, uma das passagens mais tristes do livro aborda o descaso de parentes e amigos com o túmulo de Bessie, que passou cerca de 30 anos sem uma lápide. Ou seja: o país conhecido por apagar a história das pessoas negras ao longo dos séculos, tentou fazer o mesmo com a artista mais conhecida e mais talentosa do início do século 20. 

Como fã de longa data de ambas as cantoras, foi particularmente prazeroso presenciar duas das minhas cantoras favoritas se encontrando indiretamente devido ao amor de ambas pelo blues. Como prova da influência de Smith em Joplin, Jackie Kay usa como exemplo as canções de Joplin que de alguma forma nos remetem à busca de amor de Bessie Smith. “Coming Home Blues” e “I need a Man to Love” são apenas alguns dos exemplos, mas com certeza qualquer fã que conheça um pouco da história das duas artistas conseguirá traçar mais paralelos entre suas canções. Em “Women is losers” (Mulheres são perdedoras, em tradução livre), por exemplo, Joplin canta sobre mulheres exploradas por seus homens, que, sintomaticamente, sempre terminam no topo — uma referência que nos remete diretamente à vida de Smith.

Bessie Smith tinha apenas 43 anos quando morreu em decorrência de um acidente de carro em 1937. Na ocasião, ela estava sofrendo com poucas vendas devido à baixa popularidade do Blues — que perdia espaço para o Jazz e para as salas de cinema —, e principalmente devido à Grande Depressão que assolou os EUA de 1929 até 1939. O que choca o leitor, no entanto, é saber que durante várias décadas nenhum amigo ou artista negro se dispôs a financiar uma lápide para túmulo de Bessie Smith. Apenas nos anos 70, e graças em parte a uma doação de Janis Joplin — uma mulher branca —, Bessie deixou de estar enterrada como uma indigente. Curiosamente, Janis Joplin, como todos sabem, faleceu de uma overdose em 1970, e de forma ainda mais trágica, justamente na mesma data do funeral de Bessie Smith.

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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