Nascido como um TCC-Manifesto, o texto de Maria Clara se inicia após uma poderosa e poética apresentação assinada por Linn da Quebrada e um importante prefácio em que a doutora em ciências sociais Carla Cristina Garcia nos indica — em um diálogo simultâneo com Paulo Freire e bell hooks — que o único caminho a seguir é questionar os limites e mergulhar de cabeça na educação transgressora.
Maria Clara dá início à obra relembrando seu importante feito histórico de ser uma travesti aprovada em uma universidade federal, e o texto, como não poderia deixar de ser, tem um tom de denúncia, principalmente quando a autora relembra sua dificuldade em se encaixar nos moldes binários da educação brasileira, ou quando implorava pelo seu direito de usar seu nome social e ter sua identidade de gênero reconhecida, ou, ainda, quando ela descreve os casos de violência e transfobia que sofreu no período da faculdade por parte de alunos e, por incrível que possa parecer, até mesmo por parte de educadores.
A autora finaliza o texto exigindo dignidade e segurança — o Brasil é ao mesmo tempo o país que mais consome pornografia trans e o país que mais assassina mulheres trans e travestis, sendo a maioria negra. Sua voz é claramente a de alguém que pode ser um dos diferenciais para a libertação que a educação brasileira tanto necessita, uma vez que é impossível não perceber o aspecto bancário de ensinamentos usado por grande parte dos educadores brasileiros, que tentam simplesmente adestrar seus alunos. Maria Clara faz parte de um grupo bem intencionado que anseia por uma educação mais transgressora que não solape corpos e mentes como os dela, uma educação transformadora de estruturas opressoras através de estudos e ensinamentos sobre políticas, gênero e raça.
Em “Primeiras inquietações”, que é uma espécie de segunda apresentação, a autora faz um apropriado regresso às trajetórias de diversas travestis e mulheres transexuais brasileiras que existiram e resistiram no passado, muitas vezes através de uma educação informal, em uma caminhada atravessada pelo racismo e pela transfobia institucional, mas que foram as fundadoras do Movimento de Travestis e Mulheres Transexuais no Brasil, movimento este que possibilitou toda uma nova geração de trans e travestis a receberem “títulos de licenciadas, doutoras e pós-doutoras” (p. 24).
De forma orgânica, a autora estabelece o caminho em direção ao primeiro capítulo, intitulado “Movimentos sociais no Brasil: construção de saberes insurgentes”, onde dialoga a partir da própria história com os movimentos sociais latino-americanos, ao abordar como as travestis estavam presentes nessas pautas. Foi uma experiência imprescindível ser surpreendido pela autora, que ao regressar ao período da ditadura militar no segundo capítulo, escreveu sobre a perseguição que as travestis e mulheres transexuais sofreram em Vitória, no Espírito Santo. O capítulo vem acompanhado de um riquíssimo trabalho fotojornalístico com matérias, fotografias e manchetes de jornais que vão do final da década de 70 — quando a mídia entendia as travestis como uma espécie de perigo aos bons costumes —, até os dias atuais, ao abordar as trajetórias de nomes como Erika Hilton, primeira mulher trans eleita como vereadora em São Paulo com mais de 50 mil votos em 2021, feito que a transformou na mulher mais votada naquele ano, e Erica Malunguinho, deputada estadual de São Paulo eleita em 2018 e embaixadora do Museu da Arte Negra, entre outras várias travestis que tiveram papel importante na luta pelos direitos não apenas delas, mas de toda uma geração de mulheres transexuais.
Com o segundo capítulo, intitulado “Unid@s construindo uma nova realidade social: o movimento de Travestis e Mulheres Transexuais no Brasil”, a autora nos leva ao VII Encontro Nacional de Travestis e Libertados que Trabalham com AIDS, o ENTLAIDS, que foi realizado no final dos anos 90. Um evento que ao mesmo tempo significava a esperança de um futuro melhor com a chegada do novo milênio, e uma árdua luta contra as diversas violências institucionais sofridas por elas. Ainda que a autora nunca deixe de citar e exaltar a vivência de travestis e transexuais do passado durante toda a obra, é neste capítulo que o tema é mais aprofundado, principalmente ao abordar as violências policiais, estruturais e institucionais sofridas por elas entre as décadas de 1970 e 2000, passando pela epidemia de AIDS que assolou vários países durante a década de 90.
Um ângulo interessante usado pela autora para comparar a evolução do transfeminismo, foi o tecnológico. Maria Clara nos explica como a internet — segundo ela um lugar elitizado —, fez com que esses temas (transfeminismo negro e debates sobre identidade de gênero) fossem mais discutidos, porém, deixando de ocorrer em espaços públicos, como aconteceu com as travestis e mulheres transexuais pertencentes à primeira e à segunda onda do transfeminismo brasileiro.
No terceiro capítulo, intitulado “Outras Sujeitas, Outras Pedagogias”, a autora aborda o papel da educação formal da geração atual de travestis e mulheres transexuais, que assim como o feminismo, estão aqui classificadas como “ondas”: primeira, segunda e terceira onda do transfeminismo. Neste capítulo Maria Clara trata de questões sobre campanhas educativas que buscavam exigir o devido respeito às mulheres trans e travestis no ambiente pedagógico, inclusive destacando o importante papel de educadoras travestis e como elas estão diretamente ligadas a um ambiente pedagógico mais plural, transgressor e mais abrangente.
Em última análise, ainda que com apenas 126 páginas a obra possa ser considerada curta para alguns interessados nos assuntos e nos debates gerados pelo texto de Maria Clara, Pedagogias das Travestilidades é um livro riquíssimo que certamente ganhará pontos com o leitor que não está acostumado a ler não ficção ou até mesmo textos acadêmicos. Maria Clara, é, com certeza, uma das vozes brasileiras mais importantes da atualidade, principalmente pela sua incessante luta por uma educação emancipadora.