ALERTA DE GATILHO: O TEXTO ABAIXO MENCIONA ESTUPRO, MISOGINIA, TRANSFOBIA E TRANSFEMINICÍDIO.
“Nenhum de nós pode ser livre enquanto outros ainda estão acorrentados. Essa é a verdade subjacente à necessidade de solidariedade. A liberação trans está inextricavelmente ligada a outros movimentos por igualdade e justiça.” – Leslie Feinberg
Antes do texto em si me sinto na obrigação de dar contexto acerca dos pronomes usados por Leslie Feinberg, bem como a minha escolha em usar o pronome “elu” nesse texto: Leslie foi uma autora e ativista trans lésbica e butch. Em relação aos seus pronomes, Leslie disse:
“Para mim, os pronomes são sempre colocados dentro do contexto. Tenho corpo feminino, sou uma lésbica butch, uma lésbica transgênero — referir-se a mim como she/her é apropriado, particularmente em um ambiente não-trans em que se referir a mim como he pareceria resolver a contradição social entre meu sexo de nascimento e minha identidade de gênero e tornar minha expressão transgênero invisível. Eu gosto do pronome neutro de gênero ze/hir porque torna impossível manter as suposições de gênero/sexo/sexualidade sobre uma pessoa que você está prestes a conhecer ou que acabou de conhecer. E em um cenário totalmente trans, referindo-se a mim como he/him honra minha identidade de gênero da mesma forma que se referindo às minhas irmãs drag queens como she/her faz.”
Portanto, como estamos analisando uma obra escrita dentro de um cenário trans, usarei o pronome neutro “elu” para honrar sua identidade e expressão de gênero — e porque não encontrei uma tradução ideal para ze/hir.
PS: todas as citações entre as aspas são traduções livres, uma vez que o livro ainda não possui tradução oficial no Brasil.
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Publicado originalmente em 1998, Trans Liberation: Beyond Pink and Blue (Liberação Trans: Além do Rosa e Azul — tradução livre) contém poderosas palestras adaptadas e transformadas em ensaios sobre identidade de gênero, sexualidade e transfeminismo, nas quais Leslie faz uma denúncia acerca dos problemas enfrentados por lésbicas, gays, bissexuais e pessoas trans, bem como seu esforço em demonstrar para o público LGBT da época a importância de uma liberação trans, uma vez que essa liberação, na verdade, significava uma liberação total contra os estupros sofridos por mulheres cis, contra os estupros corretivos sofridos por homens trans e lésbicas masculinas dentro e fora da prisão, contra os estupros sofridos por mulheres trans, e contra a transfobia sofrida por pessoas trans em hospitais — e o trecho em que Leslie detalha como foi expulso de um hospital mesmo estando à beira da morte é ao mesmo tempo enfurecedor e desesperador. Como solução, Leslie indica que a presença de médicos trans (ou pelo menos livre de transfobia) seria e é o indicado — algo que inclusive, foi escrito por Atena Beauvoir em seu livro Contos Transantropológicos.
Em determinado momento, por exemplo, Leslie explica com maestria algo que para nós, no ano de 2021 parece ser algo óbvio, mas que para membros da comunidade LGBT da época era algo ainda novo: que a inclusão das causas trans afetaria positivamente a luta das mulheres cis contra o sexismo, bifobia e a misoginia; afetaria positivamente a luta de gays e bissexuais afeminados contra a homofobia e bifobia; afetaria positivamente a luta das lésbicas butch contra a interseção de lesbofobia, homofobia e sexismo. A ideia central de Leslie é a de que a união de todos os grupos dentro da comunidade LGBT não significava (não significa, e não significará) perder a identidade pessoal de cada um, os transformando em um bloco homogêneo de foras-da-lei — como pessoas da época imaginavam —, mas sim, usar a pluralidade de uma infinidade de identidades de gêneros e de lutas como combustível para vencer os vários tipos de opressões sofridas por aquelas pessoas.
“A opressão das mulheres não pode ser combatida de forma eficaz sem incorporar a batalha contra a opressão de gênero. Os dois sistemas de opressão estão intrinsecamente ligados. E as populações de mulheres e pessoas trans se sobrepõem.” – Leslie Feinberg
A respeito da ignorância e do racismo de subgrupos predominantemente brancos dentro do feminismo, Leslie escreve como as mulheres brancas heterossexuais de classe média eram contra a inclusão de mulheres lésbicas, algo que não faz sentido algum, visto que quanto maior o número de mulheres dispostas a lutar pelo fim da opressão feminina, melhor. Algo similar acontece em dois grupos na comunidade LGBTQIA: dentro da risível ramificação do feminismo radical em que mulheres são contra a inclusão de mulheres trans no movimento, e na comunidade gay masculina, já que em sua vasta maioria, os gays afeminados são praticamente empurrados para um canto escuro, sofrendo represálias por parte dos gays considerados masculinos com passabilidade hétero (ou seja: tolerados com mais facilidade pela sociedade), com a desculpa de que gays afeminados — que já estão bem resolvidos e orgulhosos de sua “sexualidade barulhenta” — são uma vergonha pois reforçam o estereótipo do gay espalhafatoso.
Esclarecedor também acerca dos termos como Butch e Femme, Leslie escreve sobre sua preferência pelo termo “mulher masculina” no lugar de butch porque segundo elu, butch já vem com a carga lésbica do termo, excluindo mulheres masculinas bissexuais e heterossexuais — inclusive as que são casadas com homens que são atraídos por elas “por causa de sua masculinidade, e não apesar dela.” (posição 719 do Kindle).
Um ponto alto em um livro repleto de pontos altíssimos é o momento em que Leslie passa a falar sobre exemplos de androginia, identidades trans e crossdressing em séculos passados, inclusive dentro do cristianismo. A partir de uma merecida citação à Joana D’Arc, a chamando de Guerreira trans — que li com bastante excitação, pois me considero um aficionado na figura de Joana D’Arc como uma histórica guerreira queer que lutou contra o binarismo —, Leslie dá início a um importante estudo nos apresentando casos pouco conhecidos de outros guerreiros trans e crossdressers do passado, entre eles um grupo de homens praticantes de crossdressing de 1629 na Inglaterra, que lutou contra o alto preço do grão; Luisa Capetillo, uma drag king feminista e socialista de Porto Rico, que liderou trabalhadores do tabaco contra a exploração de seus chefes no início do século 20; e termina com os nomes já consagrados de Sylvia Rivera e Marsha P. Johnson, peças fundamentais na luta pelos direitos dos gays e pessoas trans, que teve seu início na Revolta de Stonewall, em 1969. O mais impressionante sobre esses casos, foi que essas pessoas não lutavam apenas contra as causas trans, lésbicas, gays e bissexuais — dss quais eram membros—, mas sim contra a colonização, guerras, privatização de terras, brutalidade policial etc. Ou seja: eram pessoas que faziam parte de minorias, mas lutavam pelos direitos de todos.
“Imagine como deve ter sido nos Estados Unidos durante o século XIX, quando parecia que a escravidão poderia durar para sempre. Não houve movimento de massa. Eles não tinham milhões de seguidores. Mas Nat Turner, Sojourner Truth e John Brown lutaram assim mesmo. Ao fazer isso, eles se tornaram catalisadores do movimento para abolir a escravidão” – Leslie Feinberg
Como espero estar conseguindo expressar em palavras, Trans Liberation é um livro que já deveria contar com uma tradução para a língua portuguesa, pois aborda uma infindável quantidade de tópicos relevantes na atualidade, além de trazer à tona épocas, pessoas e acontecimentos que talvez não sejam tão conhecidos fora da bolha online que se interessa por estudos relacionados à sexualidade e identidade de gênero. Um exemplo seria o envolvimento de Sylvia Rivera e Marsha P. Johnson em Stonewall — e a entrevista com Rivera talvez seja o grande destaque do livro —, assim como Huey P. Newton, líder dos Panteras Negras que foi peça importante para ao menos tentar acabar com a homofobia dentro da organização, e responsável pelo histórico discurso a favor das causas LGBT em 1970.
Falar sobre os vários tipos de opressão sofridos pela comunidade LGBT nos anos 50, 60 e 70 sem citar o movimento pelos direitos civis é praticamente impossível, pois como disse Audre Lorde, não existe hierarquia de opressão, visto que sexismo, cissexismo, homofobia, lesbofobia e transfobia estão todos interligados de alguma maneira à ideia equivocada de superioridade e dominação de um grupo sobre todos os outros — o que, como sabemos, é a base do racismo, com sua crença de que a raça branca é superior à todas as outras. Portanto, é sintomático que a revolta de Stonewall tenha começado graças à mulheres trans negras e latinas que estavam cansadas de sofrer com a interminável interseção de opressões de racismo, transmisoginia, capacitismo e brutalidade policial. É importante deixar claro que as primeiras organizações na luta pelos direitos dos gays eram atuantes também na luta pelo fim do racismo. É imprescindível que não esqueçamos que alguns dos nomes do movimento pelos direitos civis, como Angela Davis, James Baldwin, Bayard Rustin e Audre Lorde, também eram gays. Logo, é inegável a conexão entre os dois movimentos.
Em meu texto sobre Dark Days, escrevi que ler James Baldwin é excruciante, porque mesmo que seus livros tenham sido escritos décadas atrás, nós somos vítimas de uma impotência esmagadora ao perceber que a maioria dos problemas enfrentados por ele no passado continua acontecendo escancaradamente — muitas vezes com o aval de quem deveria nos proteger — no presente. Já fiz algumas vezes essa mesma observação (em contextos diferentes) acerca das obras de autores como Paulo Freire, Angela Davis e Toni Morrison, e após terminar de ler Trans Liberation: Beyond Pink and Blue, me sinto forçado a incluir Leslie Feinberg no seleto grupo acima, visto que assim como no meu primeiro encontro com sua obra, no visceral Stone Butch Blues (ainda sem tradução oficial no Brasil), minha reação foi a mesma: aplaudir a importância das palavras escritas por Leslie ao mesmo tempo em que sentia uma imensa tristeza, uma vez que mesmo após mais de duas décadas, a intersecção de transfobia, lesbofobia, homofobia, racismo, discriminação de classe e capacitismo mostrados por Leslie Feinberg ainda é, lamentavelmente, enfrentada por remanescentes daquela geração de pessoas LGBTQIA, bem como toda uma nova geração de pessoas trans, não binárias, genderqueer ou com alguma não conformidade de gênero. Feinberg escreve sobre como os movimentos pela liberação das mulheres nos anos 70 estavam sofrendo ataques sistêmicos por grupos reacionários nos anos 90. Sem surpresa, vivemos atualmente a mesma situação descrita por Feinberg há quase 3 décadas. Basta olharmos para o projeto genocida que está funcionando às claras atualmente no Brasil.
Algo importantíssimo na obra de Leslie — e que podemos aplicar na nossa sociedade atual — foi a sua incansável luta para plantar na mente das pessoas a semente da ideia de que criar estruturas em todas as comunidades era o objetivo principal — algo que infelizmente faltava e ainda falta entre as divisões e grupos dentro da comunidade LGBTQIA atual —, visto que algumas pessoas insistem em dizer que lutar pela liberdade de todos é um atraso em sua luta pessoal. E para essa ideia absurda, Leslie é enfático ao dizer que ao lutar pelo direito de todos, nós estamos, na verdade, fortalecendo os nossos próprios.
Para finalizar, gostaria de citar — e aplicar ao nosso contexto atual — as palavras de Ehn Nothing na introdução de STAR (Street Transvestite* Action Revolutionaries), livro sobre o envolvimento de Sylvia Rivera e Marsha P. Johnson na Revolta de Stonewall: “Se não engajarmos criticamente nesta história, não só perderemos ferramentas analíticas que poderiam ajudar a espalhar e afiar nossa revolta, mas também abandonaremos os mortos aos abutres que reduzem tudo a imagem e mercadoria” (posição 153 do Kindle).
*Na década de 2000 Sylvia Rivera alterou “Transvestite” por “Transgender”, por tratar-se de um termo que abrange mais identidades.
Leituras recomendadas:
• Stone Butch Blues (Leslie Feinberg);
• Street Transvestite Action Revolutionaries (STAR): Survival, Revolt, and Queer Antagonist Struggle (Sylvia Rivera e Marsha P. Johnson);
• Sou Sua Irmã – Escritos reunidos e inéditos (Audre Lorde);
• Contos Transantropológicos (Atena Beauvoir).
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