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‘The Devil Finds Work’, de James Baldwin: memórias, conflitos e estereótipos do cinema hollywoodiano

James Baldwin não poderia ter começado este longo ensaio cinematográfico de forma melhor. Publicado em 1976, essa mini autobiografia tem início com as costas de Joan Crawford no filme “Quando o Mundo Dança”, de 1931. Não preciso e nem devo esconder minha excitação quando descobri de forma gradativa que o livro é uma detalhada jornada através do cinema americano visto pelo olhos de Baldwin ainda garoto, quando uma de suas professoras o levava a várias sessões de cinema; mas não apenas isso, e sim uma pertinente denúncia contra o interminável racismo estrutural presente nas produções hollywoodianas. Para se ter exemplo da gravidade da situação, desde 1927, apenas uma atriz negra venceu na categoria de melhor atriz principal: Halle Berry.

No Calor da Noite, 1967

O autor aborda também a homofobia dos estúdios cinematográficos e da sociedade americana durante cerca de 50 décadas, ao esmiuçar as entrelinhas do que era permitido ser filmado, como por exemplo, o amor entre dois homens que precisava ser diluído em forma de amizade. Dois exemplos estão nos filmes “Acorrentados”, de 1958, dirigido por Stanley Kramer, e “No Calor da Noite”, de 1967, dirigido por Norman Jewison. Embora James Baldwin use boa parte do ensaio para analisar as performances de Poitier, Bette Davis, Sylvia Sidney e Joan Crawford, seu foco é 80% voltado às performances de Sidney Poitier em três filmes: “Adivinhe Quem Vem Para o Jantar”, de 1967, e nos já citados “Acorrentados”, e “No Calor da Noite”. Esse último é usado como peça de comparação ao lado do infame “O Nascimento de Uma Nação”, de 1915, considerado por muitos o filme mais racista de todos os tempos, que mesmo primando por suas inovações técnicas, falha na sua interpretação caricata e selvagem dos negros (interpretados por figurantes usando blackface). Em ambas as produções, há dois personagens de empregadas negras que são extremamente racistas, completamente a favor dos patrões brancos, e contra os protagonistas negros em ambos os filmes. Em alguns momentos, inclusive, usam o mesmo diálogo, indicando que os arquétipos clichês e estereotipados dos personagens continuavam presentes em filmes que foram lançados 50 anos antes graças à homogeneidade dos roteiristas brancos contratados para a maioria dos filmes.

O Nascimento de uma nação, 1915.

O ensaio é interessante também por identificar claramente através de várias cenas como os brancos precisam diminuir os negros para se sentirem à vontade com a sua própria sexualidade. O autor de Terra Estranha analisa as reações extremamente diferentes das audiências negras e brancas acerca do final de “Acorrentados”, quando o Sidney Poitier (o protagonista negro) abdica de sua liberdade para salvar Tony Curtis (o protagonista branco), numa tentativa risível dos roteiristas Nedrick Young e Harold Jacob Smith de dizer que o racismo acabaria se os negros fossem mais simpáticos com os brancos, ignorando completamente que o racismo é um problema dos brancos e não dos negros.

Acorrentados, 1958

Baldwin descreve momentos hilários na superfície, mas que apenas demonstram claramente como certos atores brancos não tinham nenhuma noção em relação à importância política da representatividade de atores negros no cinema, como por exemplo, quando sua amiga, a atriz Ava Gardner, que apesar de ser uma ferrenha lutadora a favor do movimento civil, não pensou duas vezes ao perguntá-lo se ela poderia interpretar Billie Holiday, no que ele responde em tom irônico que ela não conseguiria pelos rumores de que talvez ela fosse branca. Baldwin vai adiante ao afirmar que a piada não fora maldosa, visto que ele conhecia mulheres negras que eram infinitamente mais brancas que Ava, mas não sem antes deixar claro que a culpa não é exatamente das mulheres negras, mas sim da Hollywood branca e racista que impõe um padrão de beleza padronizada por décadas.

Ava Gardner em “Pandora”, 1951

Em um dos momentos mais tristes e chocantes do livro, Baldwin se percebe negro quando nota que nenhum dos heróis protagonistas tem a mesma cor que a sua. Em suas palavras, eles são todos brancos, e é comovente quando o autor não só relembra as palavras de seu padrasto como concorda quando ele o chama de “o menino mais feio que ele já viu na vida”, mas aqui o brilhantismo de Baldwin salta aos olhos quando mergulha ainda mais naquela ferida, ao reconhecer que na verdade, os ataques de ódio de seu padrasto por ele e pelos seus “olhos de sapo” eram, na verdade, direcionados à sua mãe, uma vez que ele possuía seus olhos, o que não fazia sentido na cabeça do pequeno, já que em sua mente, sua mãe era a mulher mais linda do mundo.

Finalmente, foi contagiante perceber a emoção de James Baldwin ao escrever sobre a primeira vez em que se sentiu representado em alguma produção, quando assistiu pela primeira vez a famosa e hoje lendária produção de Macbeth, dirigida pelo então jovem Orson Welles, que com apenas 20 anos em 1936, foi visionário e só chamou atores negros para sua versão da tragédia shakesperiana, sendo até hoje reconhecido por seus esforços para dar voz ao teatro feito por e para os negros. Curiosamente, décadas mais tarde, a autora Gloria Naylor inclui sua própria versão de Sonhos de Uma Noite de Verão estrelada por atores negros em seu brilhante romance de estreia, The Women of Brewster Place, publicado em 1982, e que em 1989 seria adaptado como minissérie por Oprah Winfrey.

Macbeth, 1936

The Devil Finds Work precisa de uma tradução para o português o mais rápido possível, pois quanto mais pessoas forem apresentadas às obras inéditas de James Baldwin, teremos mais chances de futuras gerações de seres humanos, de fato, mais humanos.

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