“Ma Rainey prestou um serviço inestimável ao seu público feminino, elevando-o a novos níveis de consciência sobre os reinos inexplorados de suas próprias vidas.” – Angela Davis (tradução livre).
Dirigido por George C. Wolfe, A Voz Suprema do Blues (baseado na homônima peça de teatro escrita por August Wilson em 1982) narra a tensão entre gerações de músicos com estilos, idades e mentalidades diferentes na década de 20, enquanto demonstra a exploração de artistas negros por produtores musicais brancos. Quando o estilo musical da Rainha do Blues, Ma Rainey (Viola Davis) bate de frente com o de Levee Green, seu trompetista interpretado por Chadwick Boseman — talentoso e antenado à curva que o Jazz estava prestes a fazer —, o que parecia ser uma exuberante celebração da vida de uma cantora negra e bissexual em uma época em que isso era considerado tabu, acaba se reconstruindo lentamente, se transformando em uma tragédia anunciada a cada olhar de soslaio e a cada passo dado pelos personagens. Em seu livro Blues Legacies and Black Feminism: Gertrude “Ma” Rainey, Bessie Smith, and Billie Holiday, Angela Davis, ao demonstrar a importância político-social-cultural de Rainey, escreve sobre a canção “Prove it on Me”: “Prove It on Me é uma precursora cultural do movimento cultural lésbico dos anos 1970, que começou a se cristalizar em torno da apresentação e gravação de canções de afirmação lésbica.” (p. 40).
Em maior ou menor grau, tópicos como arte, religião e bissexualidade são abordados com mãos firmes por Wolfe, bem como o que talvez pode ser considerado como uma Proto-Sneaker Culture: a histórica relação entre política, poder aquisitivo, raça e o ato de comprar, cuidar e ostentar tênis caríssimos — e que anos mais tarde, já na década de 80 ganhou força quando a Adidas se aproveitou do sucesso da música My Adidas, do grupo americano de rap Run D.M.C., criando uma coleção inteira com referências ao grupo. O elenco primoroso ainda conta com Colman Domingo (Euphoria), Glynn Turman (Fargo) e Michael Potts (True Detective) como os outros membros da banda que acompanha Ma nas gravações do disco. A interação entre os membros da banda de Ma é um dos melhores aspectos do filme.
Infelizmente, assistir ao soberbo A Voz Suprema do Blues nunca deixará de ser uma experiência agridoce devido à morte prematura de Chadwick Boseman (Destacamento Blood) devido a um câncer durante a pós-produção do filme. Impactante desde os primeiros segundos, quando ouvimos passos apressados na mata seguidos de latidos de cachorros raivosos, o que imediatamente nos faz lembrar dos linchamentos sofridos por pessoas negras àquela época, e que foram mostrados por Lee Daniels no início do mediano Estados Unidos vs Billie Holiday; no chocante primeiro close-up de Viola Davis (Hacker); durante as eletrizantes sequências de ensaios musicais; nas magníficas atuações de Viola Davis e Chadwick Boseman; ou no derradeiro clímax, quando ficamos sem reação devido à ação de um determinado personagem.
A Voz Suprema do Blues aposta muito na sutileza dos pequenos detalhes, como por exemplo, a constante troca de olhares entre os membros da banda, que serve como uma indicação de que as coisas estão prestes a sair dos trilhos, ou displicentes close-ups em objetos aparentemente inofensivos, mas que poderão ser de muita importância na trama. A tensão entre eles é prolongada por Wolfe até deixar de ser humanamente possível, culminando em um dos momentos mais angustiantes na história cinematográfica recente (algo parecido aconteceu no também impecável clímax de Judas e o Messias Negro). É impossível fazer justiça ao brilhantismo do filme, que conta com um impecável trabalho no design de produção, maquiagem e figurino. Sem surpresas, o filme concorre no Oscar nas categorias de Melhor Design de Produção, com Mark Ricker (Trumbo: Lista Negra, e Histórias Cruzadas), Melhor Maquiagem, com Matiki Anoff (Mulher-Maravilha 1984, e 8 Mile: Rua das Ilusões), Melhor Figurino, com Ann Roth (As Horas, A Insustentável Leveza do Ser, e O Leitor), Melhor Atriz (Viola Davis) e Melhor Ator (Chadwick Boseman) no próximo domingo, quando acontece a 93ª cerimônia.
Em suma, escrever sobre A Voz Suprema do Blues sem estragar a experiência de outras pessoas com spoilers é uma tarefa muito difícil, então o meu conselho é correr para a tv mais próxima e ser impactado por 90 minutos pelo brilhantismo e pela urgência dessa obra que certamente dará a Boseman seu merecido Oscar, ainda que, infelizmente, de modo póstumo.
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