James Baldwin: Paternidade, ressentimento e ódio em Notas de um filho nativo

Escrito originalmente em 1955 por um jovem James Baldwin, Notas de um filho nativo, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Paulo Henriques Britto, é considerado uma obra prima da não-ficção. Em seus dez ensaios, divididos em três partes, o autor aborda uma série de tópicos importantes, entre eles o lugar do homem negro na sociedade, no cinema e na literatura americana (e aqui ele faz duras críticas a obras consagradas como A Cabana do Pai Tomás, de 1852; e Filho Nativo, de 1939), o racismo institucional, o ódio por pessoas brancas, sua vida de expatriado na França, e talvez, ao menos para mim, a parte mais dolorosa de todo o livro: a conturbada relação com o pai, que morrera, por ironia do destino, no dia em que Baldwin comemorava dezenove anos.

James Baldwin termina a nota de introdução dizendo que seu desejo é ser um bom escritor. Para nós, ler algo assim vindo de uma das mentes mais brilhantes que o mundo já viu (não apenas o mundo da literatura, veja bem) é curioso. Mas é preciso ter em mente que Baldwin tinha somente trinta e um anos quando escreveu Notas de um filho nativo; logo entendemos seu curioso e simples desejo. É difícil acreditar que alguém como ele, que aos doze anos já havia escrito um premiado conto sobre a revolução espanhola e peças de teatro que eram dirigidas por seus professores, tinha dúvidas reais sobre o seu talento. 

Impressiona o detalhe de que um dos contos mais antigos publicados nesse livro foi escrito quando o autor tinha apenas vinte e quatro anos. De modo que não é difícil concordar com o autor quando ele respondeu que seria loucura escrever um livro de memórias com aquela idade. Por sorte, Sol Stein, seu editor, o convenceu a organizar vários de seus ensaios autobiográficos publicados no passado, organizá-los de forma coerente e publicá-los em forma de livro após o sucesso de Go Tell It on the Mountain, seu primeiro romance, uma vez que o segundo, que viria a ser intitulado O Quarto de Giovanni ainda estava nos primeiros estágios de escrita. 

Capa original de Notas de um filho nativo

Aos mais familiarizados com os ensaios do autor publicados mais tarde em sua carreira, esse livro pode causar um estranhamento. A raiva, como não poderia deixar de ser, e principalmente tratando-se de uma mente tão jovem, está devidamente onipresente no livro. De todo modo, sofremos um choque ao ler no ensaio que dá nome ao livro, que o Baldwin da capa acima, franzino e de aparência frágil, ponderou — desejou, seria a palavra mais apropriada —, durante um estranho transe, matar uma garçonete branca que se recusou a atendê-lo em um restaurante segregado:

“Odiei-a por ter um rosto branco, por ter aqueles olhos grandes, perplexos e assustados. Pensei que, se ela sentia tanto medo de um negro, eu devia fazer jus àquele medo. […] Senti que precisava fazer alguma coisa com as mãos. Eu queria que ela chegasse perto o suficiente para que eu lhe agarrasse o pescoço.” (p. 123)

Curiosamente, Baldwin se comporta exatamente como Bigger Thomas, o protagonista de Filho Nativo, romance de Richard Wright, que ele mesmo criticou veementemente por dois capítulos inteiros no início do livro devido à construção caricatural e estereotipada de Bigger como “negro violento”. Após o lançamento desse livro de Baldwin, Wright, que era uma espécie de mentor e amigo dele, se sentiu furiosamente ofendido pelas críticas. A amizade entre os dois cessou de forma definitiva.

Capa do livro Filho Nativo

Não sei se isso é devido à pouca idade, mas em certos momentos, o autor escreve da perspectiva de um observador branco, e às vezes, estranhamente se incluindo no grupo. A impressão aqui é de que é uma escrita como se ele quisesse ser bem recebido pelos intelectuais brancos. Posso estar equivocado na minha interpretação, mas em vários momentos o autor soa como se estivesse de fato entre os brancos, como por exemplo, no ensaio “Muitos milhares de mortos” em que ele escreve sobre o homem negro nos Estados Unidos:

“Até hoje nos encontramos diante de uma divisão que que o impede de se casar com nossas primas ou nossas irmãs e também — de modo geral — de comer às nossas mesas ou morar nas nossas casas” (p. 52)

Baldwin examina as noções de masculinidade, homossexualidade e raça como poucos, e isso é um fato que ninguém ousa contestar. Porém nesse livro existe algo mais. A saber, mais precisamente no ensaio “Igualdade em Paris” acontece uma tragicômica intersecção de gêneros digna do surrealismo de Luis Bunuel e do delírio kafkiano. É como se Baldwin estivesse protagonizando a sua própria versão simbiótica de ambos O Processo e O Anjo Exterminador: drama, comédia, crime e uma crescente inquietação (em nós, os leitores) devido à sufocante paranoia presente no estilo de escrita escolhido pelo autor para relembrar aquela história em particular. Os momentos são recontados com horror pelo autor, que dias antes do natal, acabou sendo preso em uma prisão francesa por causa de um roubo (que ele não cometeu) de um lençol de hotel. Baldwin descreve os oito dias em que passou à espera de um julgamento que nunca acontecia, suas idas e vindas através de várias pequenas salas labirínticas enquanto um medo (justificado — afinal ele era um negro americano em uma prisão em que absolutamente ninguém falava a sua língua) abismal não parava de crescer.

Surpreendentemente, ao sair da prisão após o natal, Baldwin encontra o pintor Lucien Happersberger, então com 17 anos, que viria a ser seu namorado, e que de acordo com o próprio autor, foi seu único e  verdadeiro amor. Lucien foi responsável, e de uma forma deveras inusitada, pelo título do primeiro romance de Baldwin, Go Tell It on the Mountain: ao passar férias nas montanhas suíças, o casal estava em um local mais alto quando o escritor escorregou e prestes a cair em um penhasco, foi salvo pelo namorado que o segurou pelos braços. 

Lucien Happersberger  e James Baldwin

É impossível falar sobre Notas de um filho nativo sem citar o ensaio homônimo. Um dos mais dolorosos agrupamentos de sentimentos relacionados à paternidade já escritos pelo autor. Com o coração dilacerado e certo remorso, ele relembra a relação conturbada com seu pai. Pastor energético, o pai, assim como Baldwin, continha ao mesmo tempo ódio e pavor de pessoas brancas. Cheguei, inclusive, a lembrar imediatamente de Rufus Scott, o protagonista de Terra Estranha quando Baldwin escreve: 

“Creio que uma das coisas que fazem as pessoas se apegar a seus ódios com tanta tenacidade é a sensação de que, uma vez dissipado o ódio, elas serão forçadas a enfrentar a dor” (p. 128)

Seu pai era veemente contra as suas aspirações artísticas, uma vez que o filho era influenciado por uma professora branca, e antes, o próprio autor, ao falar sobre seu descontentamento acerca dos políticos negros progressistas e seu relacionamento com a educação dos jovens negros no ensaio “O Gueto do Harlem”, parece concordar com as palavras do pai: “[…]qualquer negro que leve ao pé da letra a formação que recebe na escola vá ficar praticamente incapacitado para viver nessa democracia.” (p. 85). Isso, claro, partindo da ideia de que a maioria dos professores era branca.

A palavra “ódio” aparece várias vezes durante todos os ensaios, e Baldwin escreve de forma impactante acerca desse sentimento. Tuberculoso, seu pai morreu na manhã em que o autor completava dezenove anos, e para complicar ainda mais os sentimentos do jovem, o enterro aconteceu horas depois da brutal revolta racial do Harlem em 1943, que também é citada por Ralph Ellison em seu romance O Homem Invisível. Acerca da fatídica manhã, o autor escreve:

“Na manhã do dia três de agosto, levamos meu pai para o cemitério, passando por ruas caóticas e cheias de cacos de vidro. […] Quando o levamos ao cemitério, estávamos cercados pelos detritos da injustiça, da anarquia, do descontentamento e do ódio. Para mim, era como se o próprio Deus tivesse preparado para marcar a morte do meu pai, a mais prolongada e mais brutalmente dissonante das codas.” (p. 112)

Em última análise, o ensaio “Notas de um filho nativo” conversa pessoalmente comigo. Foi doloroso me reconhecer, guardadas as devidas proporções, naquele ressentimento de Baldwin com (a falta de) relação com o pai. A carência, o desejo de uma conexão qualquer. Senti sua dor quando ele descreveu aquele sentimento amargo de que não existiu um fiapo sequer de reciprocidade amorosa; foram, de um modo melancólico, longínquo e devastador, apenas duas pessoas completamente estranhas que de alguma forma precisavam — melhor: necessitavam — de uma serenidade na própria consciência para finalmente criar um laço afetivo que infelizmente nunca se realizou.


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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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