“A conversa foi virando um verdadeiro flerte, de ambas as partes. O lençol de Kenny, sob a influência relaxante da conversa e da cerveja, escorregou, deixando à mostra um braço e um ombro e se transformando em um traje grego clássico, as clâmides usadas pelo jovem discípulo — o predileto, sem dúvida — de um filósofo. Neste momento, está absolutamente, perigosamente charmoso.” – Christopher Isherwood
O luto nos assola de modo particular. Não existe uma fórmula a ser seguida. Não podemos usar a experiência — nossa ou alheia — quando a dor da partida de um ente querido acontece. Algumas pessoas, com a melhor das intenções, costumam dizer que é só dar tempo ao tempo; que nada como o tempo para esquecermos. A dolorosa verdade é que nunca esquecemos, apenas encontramos um jeito de nos acostumarmos com o vazio. Algumas pessoas tentam preencher o espaço o mais rápido possível, deixando em seus corações, suas mentes, seus corpos, um resquício de felicidade única, que em seus momentos mais íntimos, pensam ser eterna.
No decorrer de vinte e quatro horas conhecemos George, um professor de inglês de meia-idade que, vivendo no sul da Califórnia nos anos 60, tenta achar meios de lidar com a morte trágica de seu parceiro, Jim, ocorrida há um ano. De origem inglesa, ele é retratado como um outsider, seja de maneira sociocultural, esbarrando na ideia estereotipada de sucesso familiar norte-americana de seus vizinhos patriotas — devidamente brancos, heterossexuais, racistas e homofóbicos —, seja de forma arquitetônica, na escolha de sua casa, refletindo sua orientação sexual, ou até mesmo profissionalmente, se comparado com os outros professores da escola em que trabalha.
Narrado em terceira pessoa, e com um detalhismo impressionante, Um homem só (publicado originalmente em 1964 e lançado no Brasil pela Companhia das Letras em 2021) tem início em uma manhã onde testemunhamos George acordando após uma noite de sono. Decidido a viver seus dias na esperança de encontrar novamente a vontade de estar vivo, o protagonista tenta, na medida do possível, performar o que é esperado dele pela sociedade da época. Performance, aliás, poderia ser considerada a palavra-chave não apenas do romance, como também do protagonista, uma vez que fora de casa ele precisa vestir sua fantasia heterossexual — afinal estamos em uma época em que homens gays eram considerados pervertidos sexuais, pedófilos em potencial, podendo sofrer com terapias de choque, internações compulsórias, além de cirurgias psicológicas capazes de causar danos irreversíveis. Essa performance heterossexual ganha ainda mais peso se lembrarmos da nacionalidade de ambos Christopher Isherwood e de seu protagonista George, e a relacionarmos com a vida e morte do matemático inglês Alan Turing. Apenas para demonstrar o perigo que homens como George corriam, cabe uma pequena pausa na análise do livro para falar brevemente sobre Alan Turing. Um herói de guerra, Turing foi condenado por indecência em 1952 após revelar um relacionamento com outro homem, e para não ser preso, aceitou sofrer castração química e reposição hormonal forçada através de aplicações de estrogênio que causaram a feminização de seu corpo, além de impotência e o surgimento de glândulas mamárias. Como resultado, Turing cometeu suicídio em 1954, aos 41 anos de idade, uma década antes da publicação de Um homem só.
Geografia e arquitetura como extensão e proteção sexual
A importância que o autor dedica aos detalhes impressiona em vários momentos da trama. Já nas primeiras páginas, Isherwood usa o fluxo de consciência como exposição para situar o leitor acerca da posição dos móveis da casa do protagonista, bem como a estrutura e localização da casa em comparação com as demais. Se todas as outras casas estão em ruas abertas, claras e de fácil acesso, a casa de George e Jim era coberta de heras, de cor escura, escondida atrás árvores enormes, e era localizada no topo de um penhasco, que por sua vez só poderia ser acessado após atravessar uma ponte nada segura que cobria um riacho. É sintomática a escolha de um lugar tão opressivo para viver, se pensarmos que tudo que um casal homossexual queria na época era paz. Em contrapartida, estas características podem simbolizar a percepção dos vizinhos acerca da sexualidade do casal. Em determinado momento o autor deixa claro que dependendo do ângulo, George pode ser visto no banheiro por qualquer pessoa na rua. Informação que cria uma espécie de paranoia no protagonista devido à falta de privacidade, apesar do enorme cuidado ao escolher sua morada, e uma crescente sensação de perigo, uma vez que um vizinho bisbilhoteiro conseguiria obter imagens comprometedoras de George durante um possível encontro amoroso.
É curioso como somos transportados de modo quase imperceptível de nossas casas para o banco do carona de George: em um momento estamos lendo a descrição de seu caminho, repleto de curvas perigosas e penhascos, e ao virar a página estamos ali, ao lado do protagonista, como anjos da guarda, prontos para assumir o volante no caso de George desistir de sua vida. Por conseguinte, durante toda a duração do percurso ficamos preocupados com sua vida, uma vez que as descrições da estrada funcionam quase como premonições de um possível final trágico. Essa sensação de tragédia iminente se arrasta por todos os momentos no decorrer do dia. Sofremos quando o protagonista se sente com falta de ar ao subir uma escadaria da casa de uma amiga; sofremos novamente quando no final daquela noite, completamente bêbado, ele precisa não apenas sobreviver a descida, como também todo o trajeto de volta de carro por aquelas ruas, que como já sabemos, são repletas de curvas perigosas; sofrermos ainda mais, quando na mesma noite, George encontra Kenny, um de seus alunos em um bar e ambos bêbados, decidem nadar em um mar violento, com ondas enormes. Todas as suas atitudes nos fazem crer que, apesar de estar desesperadamente solitário e em busca de calor humano, George simplesmente perdeu a vontade de viver após a morte de seu amor, e sem saber como prosseguir com sua vida, está disposto a ser deste o seu último dia no planeta.
Repleto de erotismo e de momentos memoráveis, Um homem só (traduzido por Débora Landsberg) tem seus pontos altos em suas várias passagens de fluxo de consciência, com destaque para o momento em que, ao escrever sobre um encontro entre George e um colega no campus da Universidade, o narrador praticamente esquece da cena e passa vários parágrafos detalhando com uma sensualidade avassaladora — afinal é uma cena contada do ponto de vista de George, um homem gay — cada parte do corpo de dois jovens atléticos, suados e sem camisa que jogam uma partida de tênis em uma das quadras da universidade. O que surpreende, na verdade, é como Christopher usa estes momentos não apenas para analisar a sede sexual homossexual através de olhar de um homem de meia-idade que receia estar prestes a deixar de ser desejável sexualmente — e aqui cabe uma discussão sobre o etarismo na comunidade gay —, mas também, de forma sútil, fazer comentários acerca de questões políticas, raciais, sociais e culturais entre dois rapazes de países diferentes.
Em última análise, Um homem só é um clássico LGBTQIA+ absoluto; um romance introspectivo e triste — ainda que surpreendentemente engraçado —, devidamente embebedado em fontes virginiawoolfianas que tem como tema central a perda — a perda de um amor, a perda da juventude, a perda de identidade, a perda da vontade de viver. Com uma trama simples, trágica e belíssima, tem tudo para ser um sucesso entre os intelectuais aficionados por histórias queer.
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